No final de janeiro deste ano, o Estado de São Paulo publicou o Decreto nº 69.319/2025, estabelecendo normas para a execução orçamentária e financeira do exercício de 2025. Em outras palavras, a norma indica como os recursos públicos estimados na lei orçamentária anual serão gastos ao longo dos meses. Trata-se de demanda do artigo 8º da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000): em 30 dias após a publicação dos orçamentos, o Poder Executivo deve estabelecer “a programação financeira e o cronograma de execução mensal de desembolso”.
A programação orçamentária em específico consta do Anexo I do referido decreto, no qual são estabelecidas as quotas mensais para cada unidade orçamentária, bem como os valores desde logo contingenciados – aquele montante de despesa que, a despeito de previsto, não poderá ser gasto, pois ficará “congelado” no orçamento. Como nos ensina Élida Graziane, as escolhas orçamentárias revelam as prioridades do governo, com impacto direto na realização, ou mitigação, de direitos fundamentais.
Um olhar atento ao decreto de programação orçamentária do governo do Estado de São Paulo deixa claro quais políticas públicas e direitos não são prioridades neste governo: não houve qualquer contingenciamento para a Assembleia Legislativa, Tribunal de Justiça, Tribunal de Justiça Militar e Tribunal de Contas do Estado – dentre outras. Em contrapartida, a Secretaria de Políticas para a Mulher já inicia o ano com 56% das despesas contingenciadas e a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação com 53%.
Seria possível argumentar que o contingenciamento massivo de despesas relacionadas com os direitos das mulheres e com o direito à moradia digna decorre da solidez das políticas públicas nessas áreas e, assim, a possibilidade de direcionar recursos a outros fins, mais relevantes e afins às necessidades da população paulista. Mas uma tal alegação, parece evidente, seria permeada de cinismo.
Comecemos pelo tema da segurança pública, ao qual o governo de São Paulo tem dedicado (merecidamente) muita atenção. Segundo o instituto Sou da Paz, nos primeiros seis meses do ano de 2024, tivemos 124 mulheres mortas no Estado de São Paulo; um aumento de 8,8% em relação ao mesmo período de 2023. A comparação com 2019, momento anterior à pandemia de covid-19, evidencia cenário mais grave: o acréscimo foi de 42% no número de feminicídios. Incremento ainda maior se verifica em relação às tentativas de feminicídio: foram 257 mortes tentadas no primeiro semestre de 2024 – um crescimento de 185,6% em relação às 90 tentativas no mesmo intervalo de 2023.
No que se refere ao desenvolvimento social e à habitação, de acordo com o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, o Estado de São Paulo possui 126.112 pessoas em situação de rua, o que representa um aumento de 18% em relação aos dados de dezembro de 2023.
O cenário de baixa prioridade para políticas focais direcionadas a grupos vulnerabilizados não é exclusividade da esfera estadual. Em meados de 2024, o governo federal bloqueou R$ 11,17 bilhões do orçamento de 2024; medida necessária para cumprir com as regras do regime fiscal sustentável, criado pela Lei Complementar nº 200/2023. O Ministério da Igualdade da Racial e o Ministério das Mulheres estiveram entre os mais afetados, proporcionalmente.
Medidas como essas são contraditórias com a demanda premente da construção de um orçamento público que contemple o enfrentamento, de modo transversal, das desigualdades que estruturam nossa sociedade. O Plano Plurianual (PPA) da União para 2024-2027 (Lei nº 14.802/2024) deu um passo importante nesse sentido, com a construção de agendas transversais de raça e gênero juntamente com indicadores e metas concretas relacionadas à realização de direitos dos grupos mais vulnerabilizados. Na disputa política que permeia a distribuição de recursos públicos, essas agendas não podem ser desprezadas, sob pena de ineficácia dessas medidas, bem como de prejuízos severos a parcelas grandes da população.
O PPA do estado de São Paulo para 2024-2027 (Lei nº 17.898/2024), de seu turno, não insere políticas públicas para as mulheres em qualquer objetivo, a despeito de prever, em mais de uma prioridade, questões relacionadas com moradia e redução do contingente de pessoas vivendo em situação de rua. Estamos, nesse aspecto, muito distantes de um orçamento que seja sensível a questões de raça e gênero. Esse debate é urgente e deve ocupar a pauta pública. Sem receitas não se realizam direitos – em especial aqueles das pessoas em posição de vulnerabilidade As escolhas orçamentárias devem refletir os direitos fundamentais previstos na nossa Constituição, necessariamente.
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Fonte: Valor