Existe um golpe on-line em que alguém cria uma identidade falsa para enganar e manipular. Provavelmente, você já deve ter visto alguma notícia sobre isso, como aqueles casos famosos em que uma pessoa acha que está em um relacionamento amoroso por anos — trocando mensagens, fazendo planos — até descobrir que tudo não passava de uma farsa.
Também existem aquelas situações que envolvem perda de dinheiro, quando a vítima envia quantias expressivas acreditando estar ajudando alguém em apuros, mas, na verdade, está alimentando uma mentira cuidadosamente roteirizada.
Isso se chama “catfishing” e, na sua origem, o termo não tem absolutamente nada a ver com as relações de trabalho. Quer dizer, até pouco tempo atrás.
É que, recentemente, vi alguns conteúdos sobre “corporate catfishing” e “career catfishing”. O primeiro diz respeito a empresas que criam uma imagem exageradamente positiva — e muitas vezes enganosa — sobre seus benefícios, sua cultura e seu ambiente organizacional durante o processo seletivo, com o objetivo de atrair talentos qualificados. Já o segundo trata de uma prática crescente entre profissionais, especialmente das gerações mais novas, que aceitam uma proposta de emprego, mas depois simplesmente somem, sem dar explicações ou sequer aparecer no primeiro dia de trabalho.
Achei tudo isso curioso porque, afinal, o que um termo do universo dos golpes digitais estaria fazendo no vocabulário do trabalho? Na verdade, acho que o adjetivo não seria exatamente “curioso”, mas preocupante — e, em algum grau, triste.
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Quem já me escutou em palestras, aulas e apresentações, sabe o quanto critico a expressão “conflito geracional”. Não é que eu negue a existência de conflitos no ambiente corporativo, meu ponto é que devemos abordar o assunto através de outra perspectiva: a do encontro geracional.
Contudo, apesar de acreditar nesse movimento de criar pontes e desenvolver diálogo, começo a me preocupar quando vejo o vocabulário típico de um crime ser usado para definir as relações de trabalho. O que isso significa para a forma como estamos nos conectando dentro do mundo corporativo? Será que, sem perceber, estamos normalizando a desconfiança como base desses vínculos?
É óbvio dizer que não deveríamos conceber as relações de trabalho a partir dessa ótica, mas, diante desse cenário, sinto que precisamos reforçar essa ideia. A troca entre empresas e talentos não pode ser baseada no engano de nenhuma parte — e essa premissa deveria ser básica desde o primeiro até o último contato.
Um employer branding, por exemplo, construído com base em promessas vazias ou valores que não se sustentam na prática, pode até atrair excelentes profissionais no curto prazo, mas dificilmente essas pessoas permanecerão em um lugar cuja realidade se mostra incoerente com o discurso.
Da mesma forma, quando pessoas praticam o chamado “career catfishing”, há uma ruptura silenciosa, mas profunda, da confiança que deveria orientar qualquer início de vínculo profissional. Ao aceitar uma proposta e depois desaparecer sem dar retorno, o indivíduo não apenas desrespeita o tempo e a dedicação investidos pela empresa no processo, como compromete sua própria reputação e ainda tira a oportunidade de alguém que poderia estra trabalhando lá. Além disso, reforça uma lógica imediatista e descartável nas relações de trabalho — justamente o oposto do que precisamos cultivar se quisermos construir ambientes mais humanos, colaborativos e saudáveis.
A impressão que tenho é que, para solucionar problemas e sanar demandas de ambos os lados, estamos recorrendo a estratégias que, em vez de promoverem conexões autênticas, recorrem ao engano como modus operandi. De um lado, algumas empresas adotam discursos sedutores que não refletem sua realidade interna e, de outro, alguns profissionais agem de maneira oportunista, aceitando ofertas sem real intenção de cumprir o combinado. E, no meio disso tudo, “se constroem” relações frágeis e cada vez mais reativas.
Se continuarmos nesse ritmo, corremos o risco de transformar o trabalho — que deveria ser um espaço de construção de propósito, realização e vínculos — em um jogo de máscaras, de trapaças.
O problema do catfishing e de tantos outros golpes é que eles contribuem para uma espécie de pânico geral. Passamos a viver com medo e a desconfiar da própria sombra. É um processo desgastante e que provoca perdas generalizadas — emocionais, sim, mas também institucionais, financeiras e culturais.
Quando a desconfiança se torna o ponto de partida, as relações deixam de ser espaços de troca e passam a ser arenas de defesa. E isso paralisa, desacelera inovações, contamina ambientes, gera rupturas prematuras e, no fim das contas, impede que talentos e empresas construam algo realmente consistente juntos.
Portanto, não se engane: quando o “golpe” vira método, os danos não são individuais — são estruturais. E, no fim, todos nós pagamos essa conta.
Contudo, acredito que podemos evitar essa crise. Continuo sendo otimista e acreditando no poder dos encontros — porque ainda vejo, todos os dias, pessoas e empresas dispostas a fazer diferente. Dispostas a escutar, ajustar, aprender, ser transparentes, dar segundas chances, pedir desculpas e recomeçar com mais maturidade. Relações de trabalho não precisam ser perfeitas, mas precisam ser verdadeiras. E, quando partimos desse princípio, abrimos espaço para reconstruir a confiança — e com ela, tudo o que realmente importa.
Sofia Esteves é fundadora da Cia de Talentos, Bettha.com e Instituto Ser+.
Fonte: Valor