Francisco, o papa dos pobres, humanizou o cargo e buscou reformar a Igreja | Mundo

O argentino Jorge Mario Bergoglio era um homem que tinha a noção da História e sabia como seus gestos e ações impactavam a milenar Igreja Católica, com reflexos na vida política e social de outros tantos países e instituições.

Os ineditismos de seu papado foram muitos: o primeiro papa do Hemisfério Sul, o primeiro das Américas, o primeiro a adotar o nome Francisco, o primeiro jesuíta, o primeiro a se mostrar aberto à comunidade LGBT.

Sua morte confirmada nesta segunda-feira (21), aos 88 anos, encerra uma era e abre um período de incerteza já evidente nos últimos anos: a agenda reformista — de certos avanços e alguns recuos estratégicos — terá continuidade?

Tudo vai depender do próximo conclave, que será convocado após o funeral de Francisco. Grande parte dos cardeais que participarão da escolha do sucessor foi indicada por ele, mas a parte final do seu pontificado evidenciou as resistências e o quão era difícil promover as reformas.

Papa dos pobres, seus quase 12 anos como líder da Igreja Católica imprimiram uma série de mudanças no Vaticano, que voltou a ter um protagonismo geopolítico como não se via desde os anos 80, com João Paulo 2.

As mudanças que almejava, ou ao menos as que os apoiadores esperavam, não foram concluídas, o que lhe rendeu críticas de alas progressistas. Um maior protagonismo, na igreja, das mulheres e dos homens casados é um exemplo. Em diversas ocasiões, deu passos para trás para manter a unidade, lembrando que também essa é uma responsabilidade do papa.

Seu objetivo era reverter a crise que, cada vez mais, diminui o número de sacerdotes e fiéis em todo o mundo. Francisco se apegou à centenária doutrina social da Igreja e promoveu um “catolicismo do encontro”, em movimento e humanista, no qual os pobres e marginalizados estiveram no centro.

Sua mensagem passava por temas como meio ambiente, imigrantes, a dignidade do trabalho e a “cultura do descarte”, expressão usada frequentemente para criticar o “sistema econômico predatório”. “A minha gente é pobre e eu sou um deles”, disse certa vez.

A atuação e agenda geraram atritos internos (com os cleros conservadores e tradicionalistas de países como os EUA) e externos, tornando-se alvo da direita populista e de políticos desse espectro que ascenderam globalmente durante seus anos no Vaticano. Ele virou um personagem a ser combatido na guerra cultural, o que reforçou seu papel de líder global neste início de século. Tachado pelos adversários de “comunista”, ele declarou uma vez que a Igreja não é de esquerda nem de direita.

Amado pelos ateus ou não-praticantes

Francisco passará à história como um pontífice que, muitas vezes, era amado pelos ateus ou não-praticantes, enquanto outras tantas vezes foi detestado pelos fiéis.

“Ele foi um dos papas mais divisórios dos últimos tempos”, afirmou o historiador Giordano Bruno Guerri, que se dedicou por anos ao estudo do catolicismo e escreveu um livro sobre a relação dos italianos com a igreja.

As críticas dos conservadores começaram logo após a sua assunção, em março de 2013, quando o argentino abriu mão dos símbolos de poder e ostentação. Influenciado por São Francisco, de quem incorporou o nome graças à sugestão de um amigo brasileiro, o cardeal Claudio Hummes, ele rejeitou o quarto suntuoso no Palácio do Vaticano para dormir na Casa Santa Marta, uma hospedagem modesta. Também recusou o anel e outros objetos de ouro. Aos colegas religiosos em Roma, alertava para que não vivessem como “príncipes”.

Num outro ineditismo, o argentino se mostrou aberto a temas que eram tabus para os antecessores (acentuando ainda mais a tensão interna), como os homossexuais e a comunhão de casais divorciados. Ele promoveu a discussão sobre a ordenação de mulheres e homens casados como sacerdotes (depois, recuou estrategicamente) e incentivou o diálogo inter-religioso. Também introduziu medidas de transparência para tentar coibir a corrupção interna e para impedir a impunidade de padres acusados de abuso sexual.

A questão da pedofilia é uma chaga para a Igreja desde o fim do século 20, mas apenas durante o pontificado de Francisco os abusos foram totalmente admitidos. Ele pediu perdão às vítimas e, em 2019, publicou três documentos canônicos estabelecendo a tolerância zero para os casos de pedofilia. “É preciso prevenir males maiores e curar as feridas causadas pela fragilidade humana”, diz um dos documentos.

Hábil politicamente, Francisco soube ainda conviver com o papa emérito Bento 16, que continuou morando no Vaticano após sua histórica renúncia — até sua morte, em 31 de dezembro de 2022 — e que, em alguns momentos.

Nascido em Buenos Aires em 17 de dezembro de 1936, Jorge Mario Bergoglio era o mais velho de cinco filhos. O pai era ferroviário e a mãe, dona de casa. Na adolescência, teve uma namorada e formou-se técnico em química. Em 1958, ingressou na Companhia de Jesus (dos jesuítas) e foi ordenado sacerdote 11 anos depois.

Simpatizante do peronismo na juventude, Bergoglio tornou-se adepto da Teologia do Povo, uma variante argentina e não marxista da Teologia da Libertação.

Durante a ditadura no seu país (1976-1983), era um dos chefes da congregação dos jesuítas e manteve interlocução com militares da cúpula do regime, o que lhe valeu a acusação de cúmplice da violência ditatorial. A afirmação foi contestada por testemunhas que atestaram o empenho de Bergoglio para proteger perseguidos políticos, inclusive ajudando um deles a fugir para o Brasil.

A saúde não deu trabalho para o papa nos primeiros oito anos de pontificado. Em julho de 2021, Francisco precisou ser internado pela primeira vez para uma cirurgia que corrigiu uma inflamação no intestino grosso. Seu estado de saúde sempre foi considerado bom para um octogenário que nunca parou de trabalhar.

Nos últimos anos, porém, o cancelamento de agendas e as internações passaram a ser mais frequentes — em razão de problemas respiratórios e outros tipos de indisposição. Mas isso não o impediu de manter suas cobranças a líderes políticos em defesa dos mais vulneráveis.

Na mais recente intervenção deste tipo, em janeiro, ele pediu ao governo americano de Donald Trump que revisse as deportações em massa de imigrantes sem documento. “Tenho palavras duras para o papa”, disse encarregado americano para as deportações Tom Homan. “O papa deveria consertar a Igreja Católica.”

Desde que deixou Buenos Aires para o conclave que o elegeu em 2013, Bergoglio nunca mais voltou à Argentina. Seu corpo será sepultado em Roma, na mesma Basílica de São Pedro onde estão enterrados os antecessores.

Fonte: Valor

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