No papado de Francisco, mulheres alcançaram espaços inéditos no Vaticano | Brasil

Em uma instituição historicamente marcada pelo monopólio masculino, papa Francisco abriu as portas e puxou as cadeiras para que as mulheres pudessem dialogar como iguais em um ambiente pouco habituado a vozes femininas. Como resultado das iniciativas do primeiro pontífice latino-americano, várias católicas estão ocupando paulatinamente destacados espaços, que outrora eram exclusivos de homens.

“Quando pensamos em Igreja Católica, vem rapidamente a nossa mente padres e bispos. Ou seja, somente homens. A partir do pontificado de Francisco podemos vislumbrar e imaginar rostos femininos também”, diz Maria Clara Bingermer, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)

O pontificado de Francisco, falecido nesta segunda-feira (21), foi marcado pela nomeação de mulheres para cargos de destaque na estrutura eclesial, afirma Bingermer. Segundo ela, o argentino ressaltou, em diversas oportunidades, a dignidade feminina e advertiu que a violência contra a mulher é uma afronta divina. “Machucar uma mulher é ultrajar a Deus, que tomou sua forma humana de uma mulher”, disse Bergoglio na homilia da missa de ano-novo de 2022.

Para a professora, a valorização da mulher não é novidade nos tempos recentes da Igreja, outros também o fizeram. Porém, segundo ela, o grande diferencial de Francisco foi viabilizar e concretizar medidas.

“Ele vê a importância da presença feminina na igreja e falou explicitamente sobre isso”, diz. “Os papas anteriores também falaram, João Paulo II, por exemplo, tem uma Carta Apostólica chamada ‘Dignidade da Mulher’. Mas Francisco se comprometeu e deu passos concretos nesse caminho de inclusão.”

À frente da Igreja, papa Francisco nomeou, por exemplo, a irmã Simona Brambilla como prefeita do Dicastério para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica. Maior cargo ocupado por mulher na cúpula da Igreja.

Maria Clara Bingermer pondera que, apesar de maior visibilidade, não ocorreram grandes mudanças na hierarquia da Igreja. Ela lembra que o próprio papa convocou uma comissão com teólogos renomados a fim de analisar a ordenação diaconal de mulheres, mas, até o momento, nada de concreto foi alcançado. Em sua análise, há muita resistência a esta transformação dentro da própria a Igreja. A professora propõe, contudo, que a mudança seja feita pela base.

“Na prática, já há um diaconato das mulheres, que é muito bem recebido pelo povo de Deus”, diz. “À medida que esses espaços vão sendo mais ocupados, passar para o nível oficial fica mais fácil. Acredito que a pressão de baixo para cima é mais fecunda, pois, assim, não é uma conquista imposta, mas de reconhecimento do que já é feito.”

A presidente da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB), Irmã Elaine de Souza, tem esperança de que a inclusão e promoção das mulheres continuará, porém, assim como a professora da PUC-Rio, reconhece que há muitas resistências.

“Durante a preparação do último Sínodo, chegamos à conclusão de que pedir diretamente o diaconato feminino não funciona, pois já é quase certo uma negativa”, relata. “Então, decidimos focar, como caminho inicial, no sacerdócio presbiteral de homens casados a fim de darmos os primeiros passos. A Igreja precisa se converter um pouco mais para resgatar os gestos e as atitudes de Jesus.”

A religiosa recorda que a invisibilização e silenciamento das mulheres vem de longe, dos tempos bíblicos. Por isso, ela afirma que o primeiro passo para conquistar os espaços é o reconhecimento das próprias qualidades pessoais, que podem ser apagadas em trajetórias de silenciamentos. “Em geral, não só biblicamente, as mulheres são silenciadas, temos a passagem bíblica da Mulher Adúltera e da Samaritana sem nome, por exemplo”, diz. “Nós mulheres, precisamos ter muita convicção e certeza do nosso valor e potencialidades, porque foram séculos de dominação de machismo.”

Já para a presidente do Conselho Nacional do Laicato do Brasil (CNLB), Sonia Oliveira, as críticas do papa ao clericalismo eram uma forma de inserir as mulheres nas tomadas de decisão da Igreja.

“Nós, mulheres, somos a grande maioria na igreja, e temos a missão de ‘desmaculinizar’ essa instituição. Digo no sentido de romper com a visão de autoridade, e caminharmos na direção de uma configuração sinodal. Ou seja, participativa onde todos tenham vez e voz.”

Ela ainda lembra que Maria Madalena, uma das discípulas de Jesus, segundo os evangelhos, é uma figura que pode inspirar a caminhada pelas conquistas.

“A apóstola Maria Madalena foi a primeira que soube que Jesus ressuscitou e saiu em uma noite escura para anunciar essa novidade”, conta. “Nós, inspiradas nessa mulher, temos que romper medos, e gritar que somos capazes de ter espaço na igreja e na sociedade.”

Professora Maria Clara lembra que o papa Francisco declarou várias mulheres santas, como Madre Teresa de Calcutá; a primeira santa argentina, a Mama Antula; e a primeira brasileira, Irmã Dulce. “Ele colocou mulheres nos altares em reconhecimento das suas boas obras.”

Já sobre o próximo pontífice, Maria Clara salienta que retrocessos nestas conquistas femininas pode haver, porém são difíceis. “Sempre tem a possibilidade, tanto de retroceder como de avançar, porém acredito que foram realizadas mudanças estruturais na configuração e modelo de Igreja, o que dificulta o retrocesso.”

Caso seja cenário de dificuldade, Irmã Elaine diz que é necessário coragem e fidelidade aos ensinamentos de Cristo.

“Precisamos ir assumindo esse protagonismo, pois o projeto de Deus para a humanidade é homens e mulheres construindo um mundo melhor”, afirma. “Nós não queremos passar por cima de ninguém, mas nós somos conscientes de que homens e mulheres podem se unir em um projeto comum.”

"Machucar uma mulher é ultrajar a Deus, que tomou sua forma humana de uma mulher", disse o papa Francisco na homilia da missa de Ano-Novo de 2022 — Foto: Gregorio Borgia/AP
“Machucar uma mulher é ultrajar a Deus, que tomou sua forma humana de uma mulher”, disse o papa Francisco na homilia da missa de Ano-Novo de 2022 — Foto: Gregorio Borgia/AP

Fonte: Valor

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