Minha mãe era analfabeta, meu pai carpinteiro. Como dizia meu analista, tive a sorte de nascer branca, numa sociedade com forte herança escravagista. Também tive a sorte de fazer ensino público de qualidade numa cidade do interior do Estado de São Paulo, cheia de contradições, mas com muitas atividades no mundo das artes, no teatro e na poesia. Ao longo de quase 40 anos tive uma vida profissional que me permitiu, em conjunto com alguns pequenos milagres pelos quais sou imensamente agradecida, uma vida com dignidade.
Vamos à realidade: no Brasil são necessárias 9 gerações (aproximadamente 180 anos) para mudança de classe social. Somos o segundo pior país no ranking internacional de mobilidade social, segundo dados recentes em estudo da OCDE – Organização para Cooperação e o Desenvolvimento Econômico. Nos países nórdicos são necessárias 4 gerações e o nosso país fica atrás apenas da Colômbia, onde esse número pula para 11 gerações.
As dificuldades são maiores quando se trata de ascender à classe média. Dados do censo do IBGE de 2022 mostraram que as mulheres são as responsáveis praticamente pela metade (49,1%) dos lares brasileiro, o que significa que elas estão financeiramente encarregadas pelos cuidados com educação e saúde da família (filhos e agregados). Quando se considera o contexto específico do Brasil, a participação das mulheres no mercado de trabalho impacta na educação e na mobilidade das futuras gerações, já que elas são as responsáveis pelas famílias. Um relatório da ONU mostra que as mulheres, em todas as camadas sociais, enfrentam discriminação. Mas, são dificuldades diferentes que impactam as camadas mais pobres da população.
Bem, e o que isso tem a ver com a recente controvérsia sobre a inclusão de mulheres no mercado de trabalho? Não se trata de uma questão de energia masculina ou feminina. Essa é uma questão de riqueza e desenvolvimento econômico de um país, já que a entrada das mulheres no mercado contribui com o aumento de 20% no PIB mundial, conforme apontou o debate promovido por líderes de diversos países no recente encontro do WEF – World Economic Forum, em Davos. A inclusão de mulheres no mercado de trabalho promove um círculo virtuoso na economia em que todos podem ganhar, ainda que questões como o aumento das responsabilidades pela mulher peçam políticas públicas e mudanças estruturais na organização social, em especial no que se refere aos trabalhos de cuidados pelos quais são majoritariamente responsáveis.
O clássico artigo de Bresser-Pereira (1963) mostrava o quanto o desenvolvimento industrial poderia promover a mobilidade social, já que o crescimento do número de gestores intermediários nas indústrias provocava o crescimento das classes médias no país, antes formada apenas por funcionários públicos. Mas o mundo mudou e a configuração trabalho-classe-riqueza, que organizou o desenvolvimento no século passado, não funciona da mesma forma. Somadas às questões de classe, se interseccionam as questões de raça, uma vez que, diferentemente de outros países do G20, a população negra é maioria no país.
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Como aponta Minouche Shafik, precisamos de um novo contrato social, que enfrente questões dramáticas para a vida no planeta como o aumento da desigualdade social, o envelhecimento da população, as mudanças climáticas, o impacto da IA generativa, a qualidade da força de trabalho, entre outras. O poder econômico nas mãos dos homens nos trouxe até aqui. As mulheres, por justiça e por necessidade, precisam fazer parte desse novo mundo. Perde-se talentos e soluções criativas que poderiam ser benéficas para todas as pessoas. Ainda que nem todas as mulheres sejam doces, a necessidade de cuidar da família e dos filhos traz para elas alguma noção de sobrevivência no longo prazo.
Pensando bem, não acho que o atual modelo esteja bom para os humanos de modo geral. Além disso, infelizmente, não pudemos aprender nada com a pandemia e rapidamente esquecemos o valor do cuidado com a vida. Como já disse Caetano Veloso, alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial e já faz tempo. Gostaria, pela história que pude ter, assim como muitos da minha geração que fizeram crescer as camadas médias do nosso país, que nossos filhos e netos pudessem viver num mundo, ainda que não perfeito, mas com um pouco mais de igualdade. Para isso, é urgente que possamos construir novas formas de organização social.
Maria José Tonelli é psicóloga, doutora em psicologia social e professora titular na FGV EAESP.
Fonte: Valor