Análise: Francisco foi o mais socioambiental dos papas | Mundo

A vida de Giovanni di Pietro di Bernardone, homem que nasceu em 1226, foi a inspiração de Jorge Mario Bergoglio. Ao se tornar papa, o cardeal jesuíta adotou o nome que transformou di Bernardone em um dos mais consagrados símbolos cristãos: São Francisco de Assis. Fez da proteção à natureza e da defesa dos pobres as marca de seu papado. Francisco foi o mais socioambiental dos papas.

Na primeira encíclica da Igreja Católica sobre clima e ambiente, que ele mesmo produziu, Francisco repetiu três vezes que “tudo está conectado”. O que acontece no Ártico reflete no clima de São Paulo, a falta de abelhas tem a ver com segurança alimentar. O ser humano, a biodiversidade, a saúde dos solos – tudo faz parte do todo. É uma ideia tão cristã quanto ecológica.

Era isso que Francisco chamou de “Ecologia Integral”, conceito moderno e científico que entendeu como poucos. Queria, com a encíclica, responder à pergunta que se fazia constantemente: “Que tipo de mundo desejamos deixar para os que vêm depois de nós, para as crianças que estão crescendo agora?”

A “Laudato Si” tinha 190 páginas divididas em seis capítulos que tratavam da ciência do clima, da análise de seus impactos no ambiente e nas sociedades, e da fé. Pediu ajuda de um dos mais renomados climatologistas do mundo, o alemão Hans Joachim Schellnhuber, à época diretor do Potsdam Institute for Climate Research Impact, o PIK. Convenceu-se, com gráficos e estatísticas, que são os ricos que estão colocando planeta e humanidade em risco.

A crise climática, diz o texto da encíclica, é uma das faces da crise ética que acomete a humanidade. No texto o Papa falava sobre a proteção dos oceanos, a poluição do ar, do solo e da água, as espécies ameaçadas, os povos indígenas.

As reações à iniciativa papal começaram antes de a “Laudato Si” ser lançada. Conservadores americanos e britânicos emitiam frases de desdém sobre o documento. O ex-senador republicano Rick Santorum disse que o Papa deveria deixar a “ciência para os cientistas”. Jeb Bush, irmão e filho de ex-presidentes americanos, desqualificou a iniciativa. Donald Trump, cinco anos antes de seu primeiro mandato presidencial, reagiu dizendo que o aquecimento global era um “hoax”— uma farsa.

As reações positivas, contudo, foram massivas. O francês Laurent Fabius, à época presidente da COP 21 (a conferência do clima da ONU que aconteceria meses depois e produziu o Acordo de Paris), disse que a Encíclica era “documento do mais alto valor”. Jim Yong Kim, que presidia o Banco Mundial, declarou que a “Laudato Si” lembrava a todos a “conexão instrínseca que existe entre a mudança do clima e a pobreza”.

Três anos depois, em 2018, o Papa foi a Puerto Maldonado, na Amazônia peruana, encontrar-se com comunidades indígenas. Ali também se reuniu com o amigo brasileiro Dom Cláudio Hummes, que presidia a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB. A visita foi considerada um dos gestos mais significativos de seu Pontificado e um forte apelo em favor dos povos originários da Amazônia. “E também um renovado empenho no cuidado com a nossa Casa Comum”, disse Dom Claudio, na ocasião.

A ida a Puerto Maldonado era a semente para o Sínodo da Amazônia, que Francisco liderou em 2018. Queria novos caminhos para a Igreja e a Ecologia Integral. O processo incomodou o Exército brasileiro, que desconfiava da iniciativa de dar “rosto amazônico” à Igreja e temia ingerências à soberania nacional. A ala conservadora do Vaticano considerava o texto em discussão “uma blasfêmia”.

Francisco queria que os povos indígenas tivessem sacerdotes indígenas. Mas adultos indígenas não são celibatários, algo que o Papa não conseguiu contornar. A ideia não foi aceita pelo Sínodo.

No processo de elaboração do Sínodo, ouviu milhares de amazônidas. Eram povos originários, comunidades tradicionais, ribeirinhos. E muitos pesquisadores. O climatologista brasileiro Carlos Nobre foi um deles. “A floresta amazônica é um ‘coração biológico’ para a Terra, mas encontra-se crescentemente ameaçada”, disse Nobre aos bispos.

Em outubro de 2023, o Papa lançou a “Laudate Deum”, uma espécie de adendo da encíclica anterior. Foi motivado pela urgência climática e a intensidade dos eventos extremos. Se a encíclica falava da crise ecológica (clima, poluição, lixo, biodiversidade, água, desigualdade), o texto agora focava na crise do clima. A encíclica falava em “mudança do clima”, o texto de 2023, em “crise do clima”. “O mundo está entrando em colapso”, disse Francisco no lançamento da “Laudate Deum”.

“Estamos doentes de consumo”, foi uma das frases mais célebres do Papa que estudou as conferências climáticas da ONU e o multilateralismo, quis tornar a Igreja mais indígena e olhou para a emergência climática como uma verdadeira liderança global.

Papa Francisco cumprimenta a ativista climática Greta Thunberg, que carrega um cartaz com referência ao “Laudato Si” — Foto: Abaca Press/Sipa USA via AP
Papa Francisco cumprimenta a ativista climática Greta Thunberg, que carrega um cartaz com referência ao “Laudato Si” — Foto: Abaca Press/Sipa USA via AP

Fonte: Valor

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