Biblioterapia: conheça a prática de "receitar" um livro


Já imaginou trabalhar questões internas e problemas emocionais enquanto abre um livro e viaja com as vivências de um personagem ou a profundidade de uma poesia? Pois essa prática, que todo leitor acaba fazendo inconscientemente, tem nome e método: biblioterapia Talvez você já tenha encontrado nos livros a resposta que precisava para uma questão pessoal incômoda. Ou o conforto tão necessário em momentos de tristeza. Com Carla Sousa, isso se deu ao ler “Frankenstein”, clássico de Mary Shelley publicado em 1818. Na leitura da obra durante um período difícil de sua vida, ela encontrou nas palavras da autora o abraço que precisava para não se sentir sozinha. “Enquanto estava lendo, me sentia aquela criatura, com todas as suas reflexões profundas.”
Após esse e outros tantos episódios em que os livros a serviram de refúgio, Carla percebeu intuitivamente que a leitura havia se tornado uma espécie de terapia. Mas foi apenas na faculdade de biblioteconomia que descobriu que “o cuidado com o ser através dos textos literários”, como define a prática, tinha nome: biblioterapia. E foi a partir dessa descoberta, unindo o amor pelos livros, pelas pessoas e o interesse em compartilhar histórias, que a aracajuana descobriu que seu caminho profissional estava ali: em 2014, mudou-se para Florianópolis, onde vive até hoje, para fazer uma pesquisa de mestrado com a orientação de uma das maiores referências no assunto, a professora Clarice Fortkamp Caldin.
A niteroiense Cristiana Seixas, por sua vez, descobriu a prática durante um atendimento no estágio obrigatório para a conclusão do curso de psicologia. “Recebi uma paciente que relatou sintomas graves de síndrome do pânico depois da morte do marido, que tinha falecido durante uma relação sexual com ela. A leitura que ela fazia do fato era de que tinha causado a morte dele”, conta. O luto, dela e dos filhos adolescentes, não tinha sido devidamente processado, o que acabou lhe causando as crises que paralisaram a vida. “Ofereci a ela um livro infantil chamado ‘Mas Por Quê?A História de Elvis’ [do ilustrador alemão Peter Schössow], que conta sobre uma garotinha que estava lidando com a perda de seu passarinho morto. Recomendei que o deixasse no meio do caminho para que os filhos também acabassem lendo por curiosidade. Então, o que aconteceu: o livro foi um catalisador desse encontro da família para falar sobre a morte do pai.” Ao ver a transformação da paciente, que até retomou o trabalho que tinha abandonado, Cristiana entendeu que a literatura poderia ser um instrumento. “Tive essa experiência arrebatadora e pensei:’meu Deus, o que é isso? Quero viver disso!’.”
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Surgimento do termo e crescimento na pandemia
O termo “biblioterapia” pode ser novidade para muitas pessoas, mas foi criado em 1916 pelo escritor americano Samuel McChord Crothers, como uma maneira de se referir à prática milenar de usar a leitura para promover transformação pessoal. No Brasil, o primeiro artigo sobre o tema só foi publicado em 1975 por Ângela Maria Lima Ratton, na época bibliotecária e estudante de psicologia. A área começou a se consolidar no começo dos anos 2000 com as pesquisas e artigos da mesma professora com que Carla se especializou no assunto, Clarice Fortkamp Caldin.
Já a popularização do tema aconteceu na pandemia. “O assunto ganhou uma dimensão maior com profissionais falando sobre através das redes sociais, num período em que estávamos todos ainda mais conectados. Além disso, as pessoas também estavam em busca de algo que desse conforto naquele momento difícil.” Prova disso foi o aumento expressivo no número de alunos interessados em seus cursos sobre mediação da biblioterapia em grupo. “Tive mais de cem alunos em uma turma de formação. Alguns desses profissionais, inclusive, atuam na área até hoje”, diz.
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As duas abordagens: em grupo x individual
Os cursos de formação citados por Carla Sousa são voltados para profissionais de qualquer área que desejam mediar encontros em grupo na chamada biblioterapia de desenvolvimento. “Montamos grupos de pessoas, seja virtual ou presencialmente, sempre chamando atenção para um tema específico. Fazemos uma seleção de textos ou adotamos um livro para, a partir daí, destrinchar questões comuns ao ser humano. Nunca com um viés racional, mas de leitura interna e autoconhecimento. A pergunta-chave é ‘o que você sentiu?’”, esclarece.
Já Cristiana atua principalmente com a abordagem individual, que recebe o nome de biblioterapia clínica.”O atendimento individual é um diálogo com muitas vozes. A partir do que é trazido pelo paciente, vai ter alguma obra que conversa com ele”, explica. Essa espécie de ligação entra no conceito definido como “bibliofamília”, que a psicóloga define como a relação entre a história do indivíduo, incluindo sua origem e o que traz de dor, com os livros/autores que estão na mesma frequência. “Eu recebo pessoas extremamente machucadas, mas, neste lugar, algum escritor já esteve também. Considero como se fosse um espelho interno – alguém vai colocar palavra naquilo que você sente e não tem repertório para traduzir. Além disso, também vai descortinar possibilidades que, antes,você não imaginava.”
Tendo como ponto de partida a escuta, a psicóloga pode complementar o trabalho prescrevendo livros que tenham a ver com o problema apresentado por ele. Com a leitura feita, em uma próxima consulta, o profissional pode sugerir uma reflexão sobre algum questionamento levantado no texto – e o trabalho chega nas questões que precisam ser trabalhadas através da força da oralidade. “Essa é outra chave que é um trunfo no processo. Quando a gente lê em voz alta e troca é como mágica; parece que o universo entende e ajuda”, reflete Cristiana.
Esse efeito também acontece na terapia de desenvolvimento, que compartilha com a clínica três elementos que definem o potencial terapêutico de um texto: catarse [que é a liberação de emoções reprimidas, muitas vezes através do choro], identificação e introspecção.
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Textos literários são preferência
Não existem regras sobre quais livros e autores devem ser recomendados. Ambas, Carla e Cristiana, preferem recomendar textos literários carregados de simbolismo e metáforas, com o intuito de potencializar o diálogo com o inconsciente do paciente ou grupo.”Eu sou mais clássica dentro da biblioterapia. Procuro não usar livros teóricos ou de autoajuda, mas, sim, contos, crônicas, poesias e romances”, afirma Carla. Cristiana segue a mesma linha, mas destaca o efeito especial que a literatura infantojuvenil causa. “Sinto que a pessoa desarma, porque é tanta sensibilidade… E esse tipo de livro tem duas vantagens: a síntese e a força das imagens.”
Ao pensar nas escolhas dos títulos e nas reações causadas por eles nos encontros, Carla Sousa – que gosta de chamar o trabalho de mediação afetuosa da literatura –, resume os benefícios terapêuticos do texto certo. “É uma ferramenta de promoção de saúde, bem-estar e qualidade de vida. Literatura é isso, né? Nos ajuda a viver”. E a viver mais forte, como completa Cristiana ao falar sobre a importância do aumento do repertório de livros e autores. “Você vai ficando de um tamanho… Não está mais sozinho e, sim, bem acompanhado. As pessoas sentem isso energeticamente”, finaliza.
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Fonte: Glamour

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