Descarbonização deve manter Brasil na mira de investidores | Negócios sustentáveis

No fim de 2024, quando lançou as perspectivas do setor energético no mundo, o diretor-geral da Agência Internacional de Energia (AIE), Fatih Birol, disse que a Terra ingressou na era dos elétrons. No ano passado, pela primeira vez, o investimento mundial em fontes limpas superou US$ 2 trilhões e nas estimativas da AIE o crescimento irá se acelerar. Segundo a entidade, o setor elétrico – que tem crescido o dobro da demanda total de energia no mundo – deverá se expandir seis vezes mais rápido até 2035, impulsionado por carros elétricos, chips e inteligência artificial.

A agência estima que as fontes renováveis deverão atender a 50% da alta de demanda projetada até 2030, sendo que a energia solar responderá por 80% desse crescimento. A venda de carros elétricos, puxada pela China, deve representar metade dos veículos novos saídos de concessionárias em 2030. Hoje, esse percentual está em 20%. Essa revolução traz diversos impactos sobre o setor, mesmo para países como o Brasil, cuja matriz elétrica é baseada em mais de 80% de energia limpa, o maior nível entre os integrantes do G20. O percentual é o triplo da média do mundo, segundos dados da AIE.

Em 2004, quando o modelo setorial foi sancionado no Brasil, mais de 85% da eletricidade era hidrelétrica, complementada por usinas termelétricas, boa parte a gás natural, carvão ou óleo. Não havia geração distribuída, enquanto as eólicas e solares eram tecnologias consideradas caras. Passados 20 anos, a matriz brasileira diversificou-se: as hidrelétricas perderam participação relativa e hoje geram cerca de 60%, enquanto eólicas e solares respondem por cerca de 30% da produção.

Com fator de irradiação e vento entre os melhores do mundo – ventos alísios no Nordeste fazem com que o fator de geração na região seja em alguns casos 50% melhor que a média internacional -, o Brasil deve continuar se destacando e atraindo investimentos de empresas que buscam descarbonizar suas operações. No entanto, desafios terão de ser superados. “O desajuste entre as realidades físicas e o arcabouço legal e regulatório cria distorções e abre espaço para subsídios que atrapalham a operação e a expansão do setor”, afirma a diretora do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas (FGV-Ceri), Joisa Dutra.

O crescimento do mercado livre tem sido impulsionado pela expansão de fontes renováveis, o que, por sua vez, tem tido impactos sobre os subsídios. Em 2025, a conta de subvenções paga por todos os consumidores deve chegar a R$ 40,6 bilhões, segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), com uma alta de 10% sobre 2023. A principal razão do aumento diz respeito aos descontos custeados por meio das tarifas, principalmente aquelas para os consumidores que estão no Ambiente de Contratação Livre e adquirem energia de fontes limpas. O aumento em relação a 2024 é de R$ 3,6 bilhões.

A transformação da matriz brasileira tem feito duas palavras ingressarem no vocabulário recorrente do setor: curva do pato e curtailment (corte de geração renovável). As duas terão profundas repercussões na matriz e nos negócios em um momento em que o crescimento do país é baixo.

Em 2013, o operador do sistema de energia da Califórnia, nos Estados Unidos, ao estudar cenários futuros para o abastecimento energético do Estado, criou o gráfico conhecido como a “curva do pato”, que ilustra o impacto que a geração distribuída solar tem tido sobre demanda e oferta no setor. A curva ilustra a diferença entre a demanda por energia elétrica e a geração de energia renovável, com destaque para a solar. Durante o dia, quando a geração solar atinge seu pico, a demanda líquida cai. No entanto, ao anoitecer, a produção solar diminui rapidamente, enquanto há um aumento abrupto da demanda líquida. O nome se deve ao formato da curva, que se assemelha ao contorno de um pato.

Quando o sol se põe, as 4 milhões de instalações de geração distribuída solar deixam de gerar e passam a consumir. No jargão do setor, assiste-se a uma rampa, como se milhões de aparelhos de ar-condicionado e chuveiros fossem ligados ao mesmo tempo. Essa rampa chega em alguns momentos a 33 gigawatt (GW) de capacidade – cerca de um terço da potência usada. Estimativas do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) apontam que poderá chegar a 50 GW em 2028.

Nesse cenário, ganha importância a flexibilidade de operação, ou seja, a capacidade de compensar desequilíbrios entre geração e carga. O setor assistirá pela primeira vez à realização de um leilão de reserva de potência, previsto para ser realizado em 27 de junho. O evento, que tende a marcar a recontratação de térmicas a gás natural e a contratação de máquinas geradoras adicionais em hidrelétricas existentes, deverá movimentar mais de R$ 15 bilhões em negócios. A expectativa é que seja acompanhado também de um leilão para contratação de armazenamento.

Curtailment é outra palavra que se tornou recorrente. O corte de geração renovável ocorre quando o operador desliga usinas solares e eólicas, que chegam a ter perdas de mais de 10% da energia gerada, o que consequentemente tem impacto sobre o caixa. Para os geradores eólicos, a questão é um “entrave” para a tomada de decisão de investidores em escolher o país para implantação de novos projetos, uma vez que acaba de ser instituído um grave risco na principal fonte de receita do negócio: a geração de energia. Risco este considerado infinito.

Para Luiz Maurer, consultor de energia do Banco Mundial, a questão tem de ser analisada de forma mais ampla, já que muitos empreendedores investiram em projetos por conta de subsídios da Lei 14.120, que dava desconto na conexão à transmissão. “Os empreendedores também podem melhor gerenciar este risco, tomando decisões de quanto instalar, que tecnologia, que lugares e para quem vender. E, obviamente, este risco tem que ser precificado”, ressalta.

Fonte: Valor

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