O isolacionismo promovido pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e a força com que tem jogado contra o sistema multilateral estão levando o Brasil a recalibrar a estratégia de sua política externa. Interlocutores em Brasília afirmam que o foco em reformar os organismos multilaterais, dando maior peso às nações emergentes, está aos poucos migrando para a garantir a sobrevivência do próprio sistema construído no pós-Segunda Guerra Mundial e no pós-Guerra Fria.
Um exemplo: a histórica reivindicação brasileira de inserir mais nações no Conselho de Segurança da ONU ficou mais distante, mas ainda interessa ao Brasil que o colegiado seja enfraquecido o menos possível. Outros casos são os da Organização Mundial da Saúde (OMS), do Tribunal Penal Internacional (TPI) e das negociações em torno do clima.
Em discurso no início do mês na Fundação Getulio Vargas (FGV), o chanceler Mauro Vieira externou essa preocupação.
“O agravamento das desigualdades em todo o mundo suscita diferentes reações na etapa atual. Dá ensejo, por um lado, à causa da reforma da ordem mundial, de que o Brasil é um antigo advogado. Mas dá ensejo, também, à tentação de desmonte da ordem, não raro nas próprias praças em que ela foi concebida e que mais se beneficiaram dela”, disse o ministro.
“O noticiário recente no campo comercial — com uma profusão de medidas protecionistas e de intimidação unilateral por meio de tarifas — coloca em evidência esse processo”, acrescentou Vieira.
A reforma da ONU segue sendo um tema central para o Brasil. Mas, nas palavras de uma graduada fonte diplomática, “o mais central no momento é que o sistema não desmorone”.
Antes, diz a fonte, “era uma questão de reformar o sistema para melhorar; agora, a questão de garantir a sobrevivência”.
O atual contexto conturbado, com Trump ocupando a Casa Branca, um conflito armado entre Rússia e Ucrânia e a rivalidade global entre China e Estados Unidos, cria outras “emergências”, na visão de fontes no Palácio do Planalto e no Itamaraty.
Uma dessas emergências é a questão do clima. Com os Estados Unidos se retirando do Acordo de Paris — outra medida adotada pelo republicano, o Brasil tenta assegurar que não haja um contágio que possa comprometer, inclusive, a COP30, conferência climática que terá sede em Belém, em novembro.
Outra emergência a ser tratada é o sistema multilateral de comércio, já combalido há anos com o enfraquecimento da Organização Mundial do Comércio (OMC). Na visão da diplomacia brasileira, embora esse sistema esteja funcionando mal, pior seria a implosão total das regras, com os países replicando as medidas unilaterais dos EUA uns contra os outros.
O Brasil tentará usar fóruns como o Brics e o G20 para fortalecer o multilateralismo, a fim de contra-arrestar a influência de Trump.
No caso do Brics, a diplomacia brasileira Lula tentará usar a cúpula de julho, no Rio, para impulsionar pautas relativas à COP30 e estimular a cooperação entre os países-membros.
O Itamaraty trabalha no momento para que uma “condenação ao unilateralismo” esteja no texto final da cúpula do Brics, ainda que dificilmente haja uma menção direta aos Estados Unidos. Além disso, o Brasil está costurando um pacto interno nos Brics para que haja uma “trégua comercial” entre os países-membros do grupo.
Segundo uma fonte envolvida nas conversas, seria “uma espécie de acordo de cavaleiros em que esses países evitam também tomar medidas unilaterais entre si”.
Além disso, o Itamaraty tentará convencer os demais países para que o grupo de nações emergentes leve à cúpula do clima em Belém, em novembro, uma proposta unificada de financiamento para mitigar os efeitos das mudanças do clima, estimado em US$ 1,3 trilhão.
O Brasil também tenta convencer os parceiros de grupo a apresentar suas NDCs (o compromisso climático que cada país assume no âmbito do Acordo de Paris) o mais rápido possível.
O prazo para a submissão voluntária das NDCs encerrou-se no último dia 10, com apenas 13 dos 195 signatários enviando seus compromissos.
Fontes em Brasília ponderam que a estratégia para os EUA de Trump pode ser temporária, uma vez que o republicano tem um mandato de quatro anos e não pode ser reeleito. E também creem que as medidas protecionistas adotadas por ele terão efeitos negativo sobre o emprego e a inflação, gerando resistência interna.
Assim, ele pode recuar de medidas como a recente taxação do aço e do etanol brasileiros.
O que não deve mudar, no entanto, é a inclinação de Trump de negociar bilateralmente com cada um de seus parceiros e minar o sistema multilateral.
Fonte: Valor