Milei busca apagar o peronismo para atrair investimentos a Argentina | Mundo

O presidente Javier Milei está tentando eliminar todos os vestígios do peronismo, a variante dominante do populismo na Argentina, para levar adiante sua reinvenção do país como um porto seguro do livre mercado.

Imagens de Eva Perón foram arrancadas das paredes de repartições do governo e estátuas do ex-presidente Néstor Kirchner, morto em 2010, foram retiradas do Senado e da agência da previdência social. E há apenas umas duas semanas, um guindaste amarelo arrancou o nome de Kirchner da fachada de um gigantesco palácio no estilo Beaux Arts no centro de Buenos Aires, como se fosse um velho band-aid sujo.

Mas Milei tem sido mais bem-sucedido em acabar com símbolos físicos da velha guarda do que em desemaranhar a teia burocrática que ela deixou como herança. Apesar de todas as suas promessas de dolarização rápida e de fechamento do banco central, até agora um complexo sistema de controles de câmbio e capital manteve os investidores afastados. A expectativa é que isso mude a partir de hoje.

Durante o primeiro ano completo de Milei como presidente, a Argentina atraiu menos de US$ 1 bilhão em investimentos estrangeiros diretos. É mais ou menos o mesmo resultado de seu antecessor peronista durante a pandemia de covid-19 e apenas um terço do que o queridinho do mercado Mauricio Macri atraiu com cortes orçamentários menos ambiciosos, um índice de popularidade menor nas pesquisas e menos viagens ao exterior.

Os investidores internacionais acompanham com atenção os acontecimentos, mas “continuam na posição de esperar para ver”, segundo Mariana Gallo, gerente geral da PepsiCo na Argentina e no Uruguai. “Se eu puder mostrar, e não só dizer, à minha sede que a Argentina está muito melhor em termos de regulamentação e impostos, os investimentos virão, porque o espaço para crescer é extremamente atraente”, disse à Bloomberg News durante um painel de discussão em Buenos Aires.

Os obstáculos que Milei enfrenta são personificados por Cristina Kirchner, que sucedeu ao seu marido como presidente em 2007 e durante seu segundo mandato impôs controles de capital e câmbio (“cepo”). Essas restrições impediam as empresas de enviar dividendos para o exterior. Segundo as mudanças anunciadas pelo governo Milei na sexta-feira, as empresas poderão voltar a enviar pagamentos as suas matrizes no exterior a partir deste ano, porém, os ganhos de anos anteriores continuarão sujeitos as regras do “cepo”.

O Morgan Stanley estima que sem as restrições a Argentina poderia atrair US$ 2,5 bilhões em investimentos estrangeiros apenas em 2025. Mas antes de que sua remoção possa fazer a economia argentina decolar “como um rojão” — como Milei promete repetidamente —, as empresas buscarão primeiro enviar suas riquezas que estão retidas para seus países de origem, o que poderia desencadear uma corrida cambial e colocar em risco o êxito do presidente em domar a inflação.

O grande teste para os investidores será a eleição de meio de mandato de outubro, que deve passar uma indicação crucial sobre se os eleitores estão dispostos a continuar a apoiar sua agenda de austeridade e livre mercado ou preferem voltar aos métodos do peronismo de imprimir dinheiro para fazer frente aos problemas.

“Se nas eleições de meio de mandato Milei conquistar um mandato mais forte em termos políticos, isso deve aumentar a capacidade do governo de aprovar reformas estruturais”, afirmou Kathryn Exum, codiretora de pesquisa sobre dívida soberana da Gramercy Funds Management.

Quando Macri chegou ao poder, no fim de 2015, parecia que o peronismo — movimento nacionalista de tendência esquerdista que governou o país por quase metade das últimas sete décadas — estava nas últimas. O país tinha aguentado 12 anos de governo dos Kirchners, com aumentos de tarifas, déficits massivos, calote a investidores e manipulação de dados econômicos.

Macri suspendeu os controles e unificou a taxa de câmbio, mas dois anos depois os vais e vens das políticas colidiram com uma seca que afetou as safras de exportação, o que desvalorizou tanto o peso que ele acabou por retomar as restrições. Cristina voltou ao poder em 2019 como vice-presidente de Alberto Fernández (com quem não tem parentesco), que fora escolhido a dedo. Seu governo só fez endurecer esses controles, até que seu ministro da Economia fosse derrotado, em 2023 pelo candidato azarão, o libertário Milei.

“Com Milei existe esperança, mas ninguém está disposto a investir na produção hoje”, afirmou Pablo Tamburo, CEO da Argensun, uma empresa de alimentos que exporta principalmente sementes de girassol, nozes e frutas secas. “Os investidores se perguntam constantemente: será que outro governo virá e fará um giro de 180 graus no país mais uma vez?”

A empresa de Tamburo tem vendas anuais de cerca de US$ 120 milhões e reduziu o número de funcionários de 800 para 700 no ano passado. Um de seus clientes na Espanha estava a ponto de investir US$ 5 milhões em uma fábrica, mas desistiu em dezembro, depois de verificar que seu potencial de lucratividade se deteriorou com o fortalecimento do peso sob a política cambial controlada, ao mesmo tempo que impostos onerosos, tarifas e greves trabalhistas frequentes persistiam no país.

Cristina, enquanto isso, continua a ser uma personalidade dominante dentro do movimento peronista. A proporção de entrevistados que a consideram de maneira positiva saltou de 28% em dezembro para 41% na última pesquisa realizada pela AtlasIntel para a Bloomberg News. A decisão do governo dos EUA de proibir sua entrada no país por causa de uma condenação por corrupção também ameaça polarizar ainda mais o eleitorado argentino antes das eleições de meio de mandato.

Tudo isso leva os analistas a advertirem que não se deve considerar o peronismo como uma carta fora do baralho. “Os governos são notórios por fazer picadinho das regras do jogo”, disse Steven Levitsky, professor de Estudos Latino-Americanos da Harvard University. “Se eu tivesse de apostar alguma coisa em relação ao futuro da Argentina, apostaria em outra rodada de instabilidade política ou mudança institucional.”

É verdade que o governo de Milei recebeu inscrições para cerca de US$ 12 bilhões em investimentos nos setores de petróleo e gás, lítio e obras de infraestrutura por meio de um pacote de benefícios destinado a oferecer proteção de longo prazo contra impostos e controles de capital. Mas até o momento, as empresas que aderiram são quase todas nacionais, com a notável exceção da gigante da mineração Rio Tinto Group, que prometeu US$ 2,5 bilhões. Enquanto isso, em 2024 uma série de empresas venderam operações na Argentina ou deixaram o país completamente, entre elas HSBC, Procter & Gamble e Exxon Mobil.

Diego Ferro, fundador da M2M Capital em Nova York é um cético de longa data em relação a Argentina. “O fato de que você precisa mudar tudo e de que é tão fácil mudar tudo coloca a pergunta: quão certos estamos de que a mudança é definitiva?”

Fonte: Valor

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