Morre aos 84 anos Nana Caymmi, uma das cantoras que mais emocionou seu país | Eu &

Nana Caymmi, 84 anos, não resistiu às complicações de saúde contraídas desde que foi internada na Casa de Saúde São José, na zona Sul do Rio, há nove meses, para fazer ajustes em seu marcapasso. Ela havia sofrido uma arritmia cardíaca em julho e chegou a ficar em uma UTI coronariana do hospital. Recebeu alta no dia 12 de agosto, mas voltou a ser hospitalizada nove dias depois para fazer um cateterismo cardíaco.

Uma fala um tanto comum no meio musical dizia que Nana Caymmi era desafinada. “Nana caindo”, riam. Um riso curto, contido por uma reserva de respeito, mas um riso. Eles, os delatores que hoje podem estar chorando, não estavam errados. Nana tinha problemas para sustentar notas e manter-se no prumo dos sons organizados, mas seu canto não vinha da voz. E a fragilidade que poderia ser a ruína para outra cantora surgida naquele miolo de anos 1960, quando Elis subiu a régua da qualidade técnica a níveis inéditos, se tornou sua consagração. Ser desafinada é fácil. Difícil é, ainda o sendo, ser uma das cantoras brasileiras que mais emocionou seu país.

Havia tanto sentimento em Nana, tanta vida, que as percepções abertas por ela extrapolaram o território sensorial do próprio canto. Vinha com ele não um som, mas um acalanto; não uma nota, mas uma despedida; não um vibrato, mas uma dor. Em vez da cantora, estava ali a mãe e uma mulher quase sempre devassada. Enquanto os ouvidos iniciados investigavam seus deslizes, muita gente sentia-se acolhida. Chega a parecer redutor chamá-la de intérprete. Nana não acessava sentimentos que intérpretes e atrizes acessam quando sobem a um palco para desligá-los ao descer. Ela apenas existia e, consigo, levava a sua vida. Uma senhora vida.

Nana Caymmi era filha de Dorival e de Stella Maris, irmã mais velha dos intérpretes, músicos e compositores Dori, 81 anos, e Danilo, 77. Ou seja, uma zebra. Apesar de a mãe ser cantora, o pai entendia que músicos deveriam ser seus filhos homens, não a única menina. Não foi fácil vencê-lo. Numa entrevista em 2019 para o jornal “O Estado de S.Paulo”, Nana me disse algo sobre isso: “Minha bagagem era a mais difícil, se comparada com outras cantoras. Imagine que eu tinha de respeitar uma hierarquia dentro de casa, que era meu pai, Dori, Danilo e minha mãe, com um senso musical muito apurado”. Dorival só aceitou mesmo depois de ouvir a filha cantar em seu primeiro disco. “Quando descobri minha voz, aí foi mel na chupeta. As pessoas vão para meus shows já sabendo que eu irei lavar as suas almas.”

A história começa fofa, com Nana, 19 anos, cantando em um LP do pai a faixa “Acalanto”, em 1960, para a gravadora Odeon. Era a canção que Dorival havia feito para ninar sua pequena. Ela segue de mansinho, grava um compacto em 78 rotações com “Adeus” (de Dorival) e “Nossos Beijos” (de Hianto de Almeida e Macedo Norte) e assina um contrato com a TV Tupi para apresentar-se no programa “Sucessos Musicais”, produzido por Fernando Confalonieri. Nana canta pelas beiradas até gravar, em 1963, seu primeiro disco chamado apenas “Nana”. Os arranjos do pianista Oscar Castro Neves, contratado pela gravadora que irá lança-la, a Elenco, começam a mostrar que as graças da filha de Dorival começam a ficar sérias. E maior do que a dos irmãos.

Em 1966 ela vence o I Festival Internacional da Canção da TV Globo cantando a música Saveiros, de Dori e Nelson Motta, diante de um Maracanãzinho lotado. “Dori me salvou a vida várias vezes, e uma delas foi me dando Saveiros para cantar nesse festival”, disse ao pesquisador Zuza Homem de Mello, em entrevista para um programa do Canal Brasil. Nana falava de sua vida pessoal.

Cinco anos antes de subir ao palco daquele festival, em 1961, ela se casou com um médico venezuelano, Gilberto José Aponte Paoli, e teve com ele uma experiência da qual se arrependeria pela vida. Nana deixou o Brasil, se distanciou da música e foi morar em Caracas. Contava que foi traída muitas vezes e que sofreu profundas humilhações. Sem se adaptar na Venezuela, deixou o casamento e voltou ao Brasil com dois filhos pequenos e grávida do terceiro, batizado, não por acaso, João Gilberto. O pai Dorival ficou louco. Não queria uma filha mãe solteira cantando em festivais.

É por isso que Nana agradecia tanto a Dori. Ao surgir no palco do festival de 66, ela estava estraçalhada. “Meu pai não gostou de me ver voltar desquitada, com duas meninas e um bebê na barriga. Ele me rejeitou, ficou sem falar comigo por anos. Achava que lugar de mulher era ao lado do marido”, contou Nana em entrevista de 2010 à revista “Quem”. Grávida, sozinha, sem dinheiro e com o pai lhe passando descomposturas, cantou “Saveiros” com todas as forças e fraquezas que havia em seu interior.

Sua voz atravessou os jurados e ela, uma cantora que poucos conheciam, venceu as outras duas finalistas: Maysa cantando “Dia das Rosas” (Luiz Bonfá e Maria Helena Toledo) e Tuca defendendo “O Cavaleiro” (de Tuca e Geraldo Vandré). Quando foi anunciada como vitoriosa, as vaias explodiram no ginásio. Nelson Motta conta que, ali, a vaia foi inaugurada na música brasileira. Da redenção a um novo abismo, tudo acontecia rápido demais na vida de Nana. “Impossível esquecer a raiva legítima de Nana, sua vaia à vaia. Ali, ao lado dela, éramos moços atônitos diante da multidão. Hoje, isso me dá vontade de rir e traz a certeza que a vida corre para adiante e para cima”, disse Motta.

O magnetismo de Nana incomodava Elis Regina, e isso pode ser considerado um mérito. Um pouco antes do episódio “Saveiros”, Elis, ou a produção do programa “O Fino da Bossa”, da TV Record, que a cantora gaúcha apresentava com Jair Rodrigues, convidou Nana para fazer uma participação especial. Ela pegou um avião no Rio e, já grávida, chegou a São Paulo para a gravação. Mas sentiu algo estranho. Elis não se aproximava e cochichava com seu empresário Marcos Lázaro e com pessoas da TV. O tempo foi passando e Nana terminou não sendo chamada para cantar. Anos depois, soube que Elis não estava desconfortável em dividir um palco com ela.

Em 1967, Nana começou a superar os traumas conjugais e se aproximou de Gilberto Gil, com quem namorou até 1969, quando Gil saiu em exílio para Londres. Ela ficou casada então com João Donato, entre 1972 e 1974, e teve um relacionamento com o compositor Claudio Nucci entre 1979 e 1984. Em entrevista de 2019, falou de outro de seus namorados, o compositor João Gilberto. “A gente chegou a namorar, mas foi bem rápido. Ele é muito chato. Agora então, deve estar insuportável.”

Depois de vencer uma década sedimentando seu nome dentre as grandes intérpretes do país, com álbuns como “Renascer”, de 1976, “Nana”, de 1976, e “Atrás da Porta”, de 1977, Nana expandia seu canto e via a produção de seus álbuns ser aprimorada. Em 1983, gravou o LP “Voz e Suor”, com Cesar Camargo Mariano, e, em 1989, “Só Louco”, com Wagner Tiso. Foi neste ano que sentiu o golpe que dizia ser o mais doloroso de sua vida.

Seu filho João Gilberto cresceu e passou a sofrer com dependências alcoólica e química. Em 16 de dezembro de 1989, ele causou um grave acidente de moto no Rio de Janeiro. Com traumatismo craniano, ficou quatro meses em coma. Nunca mais voltou a ser o mesmo, sendo cuidado pela mãe por só se locomover em cadeira de rodas e sofrer com sérias perdas cognitivas. Não eram raras as vezes em que Nana desabafava sobre o filho em suas entrevistas: “Ele estava sem capacete, tinha bebido, estava fumando maconha, como fuma até hoje. Aí, aconteceu o acidente. Ficou três meses internado, em coma, teve lesões na cabeça e, hoje, age como uma criança. Vou dormir às 2h da manhã para dar remédio para ele. Digo umas dez vezes por dia para ele tomar banho, umas 15 para escovar os dentes. Sou avó com filho recém-nascido”, disse em 2009.

Grandes feitos fonográficos apareceram também na próxima década, como ‘Resposta ao Tempo”, de 1998, e “Beijo Partido”, de 1999. A era que chegava exigia cuidados com a fala, já que novos filtros eram impostos por agendas identitárias importantes. Nana, com um histórico de superação das atitudes machistas sofridas dentro de casa por pelo menos duas vezes, nem sempre dizia o que se esperava que ela dissesse. O fato é que ela só dizia o que queria dizer, e essa sinceridade passou a se tornar um perigo.

Em 2019, Nana deu uma entrevista ao jornal “Folha de S.Paulo” defendendo o presidente eleito Jair Bolsonaro e atacando Chico Buarque, Gil e Caetano. “É injusto não dar a esse homem (Bolsonaro) um crédito de confiança. Um homem que estava f…., esfaqueado, correndo para fazer um ministério, sem noção da mutreta toda… Agora vêm dizer que os militares vão tomar conta? Isso é conversa de comunista. Gil, Caetano, Chico Buarque. Tudo chupador de p.. de Lula.”

Na entrevista de 2019 ao “Estadão”, ela comentou também sobre o álcool. Algumas pessoas diziam vê-la chegar para cantar alterada. “Sempre gostei de uma birita, mas tomei sempre socialmente, nunca cheguei bêbada, ninguém nunca me carregou. Enquanto as pessoas tomam cerveja, aquela merda quente, eu gosto é de uísque.”

Sobre o fato de seus discos lançados no fim da década de 2010 trazerem uma voz mais afinada do que os anteriores, e da possibilidade de ela estar usando programas de afinação artificial, comentou: “Eu sou no peito e na raça. Usar uma máquina dessas seria como mandar outra mulher em meu lugar na lua de mel. Faço tudo e, na melhor hora, não sou eu quem está lá?”. Nana, afinada, não seria Nana. Afinações e consonâncias nunca combinaram com a sua vida.

Fonte: Valor

Compartilhar esta notícia