Quiet luxury, clean girl são termos usados sem parar nos últimos tempos para descrever algumas das tendências dominando guarda-roupas e rotinas de beleza mundo afora. Mas essas nomenclaturas, e tudo o que representam, vão muito além do apelo estético, refletindo não só um visual conservador, mas também um retorno a certas tradições e um sentimento de nostalgia por tempos que nem sempre foram progressistas ou plurais. Mais do que espelho do cenário atual, esses fenômenos também carregam uma mensagem política, intencionalmente ou não.
Nada de novo no front, ao longo da história, momentos de instabilidade social, econômica ou moral já provocaram respostas estéticas mais conservadoras: no pós-guerra dos anos 50, com seus vestidos rodados e cinturas marcadas; na era Reagan e Thatcher, com ombreiras e power dressing. Toda vez que o mundo parece perder o controle, a moda responde apertando o cinto — literal e simbolicamente.
Esqueça as pessoas ultra-religiosas e recatadas como principais representantes do movimento. É claro que elas fazem parte do grupo, como sempre fizeram, mas o que chama atenção é outra grande parcela de mulheres optando por um visual calcado em valores tradicionais, mesmo sem se encaixar nesse estereótipo. Elas são jovens, modernas, altamente conectadas, com acesso e repertório. Basta observar o sucesso das chamadas trad wives (abreviação que se refere à esposas tradicionais em inglês), que romantizam os papéis de gênero dentro de um imaginário vintage de perfeição doméstica. A bordo de peças delicadas e de marcas caríssimas, influencers como Nara Smith transformam a rotina da casa em conteúdo milimetricamente editado, como se viver para o lar fosse um refúgio estético e moral. E pode até ser, desde que se reconheça que essa encenação é sustentada por muita ajuda nos bastidores e, principalmente, por contratos publicitários. Vender essa escolha como algo glamouroso ignora que cuidar da casa é, sim, um trabalho — feito todos os dias por milhares de pessoas, sem filtros, sem likes e sem retorno financeiro.
Tudo isso é informado pelo crescimento da extrema-direita, mas não exclusivamente. Muitas religiões também priorizam esse estilo mais modesto, dando força ao resultado, mesmo que as motivações venham de lugares e princípios diferentes: corpos cobertos, neutralidade cromática, poucos excessos. E, por trás disso, a valorização do recato como símbolo de status moral.

Crédito: Daniele Oberrauch / Gorunway.com

Crédito: Umberto Fratini / Gorunway.com
A moda, como sempre, age como reflexo ou resistência ao zeitgeist. Olhe para as passarelas: saltos altos ganhando espaço novamente, casacos de pele, o ultra-feminino indo mais para a doçura do que para o sexy. Corpos ora mais cobertos, ora mais restritos por corselets e cintos. Subverter a ideia do que é ser mulher e ressignificar os códigos de feminilidade fazem parte desse jogo. Nesse quesito, ninguém melhor que Miuccia Prada, verdadeira mestre em questionar e provocar — vide as coleções mais recentes da Prada e da Miu Miu. O sucesso do grupo Prada, que vai na contramão da maior parte da indústria de luxo, comprova que a visão de Miuccia acerta em cheio, para quem entende a ironia ou não.

Foto: Namilia (Reprodução/Instagram)
O movimento se expande muito além das roupas. A ascensão de tratamentos para emagrecimento embalados pelo sucesso de remédios como Ozempic e Mounjaro traz a magreza extrema de volta ao centro das atenções. Isso também aparece nas estatísticas das últimas semanas de moda, que apontam uma diminuição importante na diversidade de biotipos representados nos desfiles. A celebração da silhueta diminuta vem acompanhada de sinais culturais sutis, mas igualmente indicativos da situação, como o aumento na remoção de tatuagens. O conservadorismo anda de mãos dadas com a disciplina: se manter magra, jovem, impecável demanda uma austeridade. E essa cobrança estética contínua, muitas vezes disfarçada de autocuidado, impacta diretamente a saúde mental, criando um ciclo de controle onde não há espaço para imperfeição.
A homogeneização parece um déjà-vu. Sabemos o que acontece quando o espaço para o individualismo começa a encolher. Em momentos de crise econômica e tensão social, é comum que a sociedade busque estabilidade em estéticas previsíveis, uma forma de fingir controle quando o mundo está desmoronando. O que assusta é como esse novo conservadorismo se camufla de liberdade de escolha. Afinal, ninguém está obrigando ninguém a ser uma trad wife ou uma clean girl. Mas há uma pressão cultural invisível — e muito eficiente — para aderir a esses modelos, especialmente quando eles se tornam sinônimo de sucesso.

Foto: Calvin Klein Collection (Vogue Runway)
O estilo ligado ao conservadorismo costuma se construir sobre uma estética perfeccionista: tudo é simétrico demais, harmônico até a exaustão, sem espaço para o improviso ou o “erro”. A margem, o excesso, o estranho é limado em nome do controle visual. Isso acaba fazendo com que a autenticidade e a própria essência do indivíduo desapareçam junto com seu corpo. Ocupar menos espaço, chamar menos atenção, falar mais baixo. Vocês estão acompanhando o raciocínio? Em vez de vestir quem somos, a proposta é vestir aquilo que parece seguro, aceito, “correto”.
Apesar do tapete vermelho apontar para o contrário, no “mundo real” os ideais masculinos e femininos têm se fortalecido, priorizando os clichês de gênero: seja no feminino hiper doce, seja no recato da alfaiataria, com nada de pele à mostra. O novo conservadorismo traz de volta uma divisão de gênero rígida e exacerbada, sem espaço para nuances. Quem escapa desses extremos fica sem referência — e, pior, pode se tornar alvo de rejeição social e até política. Mulheres trans, pessoas não-binárias e corpos fora do padrão, que já são frequentemente marginalizados, ficam ainda mais expostos. Nesse cenário, a performance de um certo conservadorismo pode servir como proteção. “Parecer feminina” da maneira mais tradicional possível se torna, para muitos, uma questão de sobrevivência. A estética do conservadorismo atual é binária, inflexível. E é isso que preocupa.

Foto: Chanel (Vogue Runway)
Independente de qual lado você penda ideologicamente, é importante refletir sobre como nossos valores aparecem na forma como nos vestimos e quais mensagens nossas escolhas acabam comunicando. Nessa noção de beleza tão restrita, é como se a elegância estivesse sendo usada como defesa. Ou como filtro. Não se trata de criticar quem gosta de se vestir assim, mas de questionar por que esse tipo de estética tem sido especialmente promovido, valorizado, replicado. E por que tanta gente jovem, progressista e online está reproduzindo, talvez sem perceber, um visual que ecoa valores bem conservadores. Vale lembrar que nunca é apenas sobre as roupas. É sobre o que elas comunicam — e, principalmente, o que elas silenciam.
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Fonte: Steal the Look