No final de agosto, um post no Instagram viralizou. Desta vez, o tema não girava em torno de celebridades ou de possíveis tendências, mas tratava de uma questão extremamente pertinente, que afeta grande parte da população que depende do transporte público no país.
O conteúdo foi produzido por Carol Lardoza, historiadora de moda formada pela UFRJ, que costuma abordar pautas sobre sustentabilidade e democratização da moda, sempre refletindo diretamente a realidade brasileira.
A publicação trazia o tema “A roupa que passa pela catraca: como o transporte público define o que vestimos no Brasil?”. Nela, Carol analisava como os espaços apertados e as longas horas de deslocamento, muitas vezes em pé, impõem regras veladas sobre o que podemos vestir no dia a dia.
O assunto gerou tanta identificação que resolvemos conversar com Carol para aprofundar o debate e entender mais como o transporte, o corpo e o vestir se entrelaçam nas dinâmicas sociais e culturais do Brasil.
Leia também: 10 influenciadoras para você seguir que têm os melhores looks de trabalho
moda e transporte público
“Eu moro no subúrbio do Rio de Janeiro e minha locomoção pela cidade é marcada pelas dificuldades da mobilidade urbana”, contou Carol, ao explicar como suas vivências influenciam o olhar sobre o tema. “Percebi que o meu modo de vestir foi moldado por isso e que muitas pessoas ao meu redor também passaram pelo mesmo processo. A gente deixa de usar o que gosta ou o que reflete nosso estilo porque precisa priorizar roupas práticas, utilitárias e confortáveis.”
Essa percepção, segundo ela, nasceu da observação cotidiana dentro dos ônibus e trens da cidade. “Quando você passa horas no transporte público, convivendo com outras pessoas, percebe que há uma lógica coletiva do vestir, sendo o conforto e a praticidade são os primeiros critérios. As roupas precisam ser adequadas ao calor, ao tempo em pé e aos longos deslocamentos.”

Foto: Mayr (Reprodução/Instagram)
rio de janeiro x são paulo
duas realidades, um mesmo desafio
Carol destaca que, embora Rio e São Paulo tenham características urbanas diferentes, a relação entre moda e transporte público revela preocupações semelhantes. “No Rio, há o caos da Avenida Brasil nos horários de pico; em São Paulo, o trânsito é praticamente constante. Em ambas as cidades, as pessoas já sabem que, se forem de carro ou ônibus, vão passar horas presas, e acabam recorrendo ao metrô que, por sua vez, vive lotado.”
Ela explica que esse contexto também determina escolhas muito específicas. “Às vezes não há nem espaço para segurar a bolsa, então muita gente opta por mochila, carregando-a na frente do corpo para se proteger e evitar furtos. É uma preocupação com a segurança, mas também com o espaço físico, com o corpo e com o outro.”
Já eu, Sofia, moradora de São Paulo há 10 anos, reconheço essa mesma dinâmica na prática. Lembro da época em que morava sozinha no extremo da zona sul, estudava moda e trabalhava em escala 6×1. O transporte era um eixo da minha rotina e, sem perceber, comecei a moldar meu guarda-roupa em torno dele. As roupas passaram a ser leves, fáceis de lavar e resistentes ao calor; os sapatos, confortáveis o bastante para aguentar um dia inteiro de pé.
“Essa dinâmica é atravessada pela necessidade constante de adaptação ao ambiente”, diz Carol. “E, para nós mulheres, envolve também a questão da segurança, já que infelizmente podemos ser assediadas tanto nas ruas quanto dentro dos transportes.”

Foto: Sofia Chel (Reprodução/Divulgação)
moda como marcador social
entre o conforto e a sobrevivência
A conversa com Carol mostrou que falar sobre o que vestimos também é falar sobre desigualdade. Ela afirmou que é imprescindível analisar a moda a partir de questões de classe, raça e gênero, porque só assim é possível entender que a roupa vai além da estética e se torna um reflexo das condições sociais de cada pessoa.
Ela observou que a falta de acesso influencia diretamente a forma como as pessoas se relacionam com a moda. Quando não se consegue escolher uma roupa confortável para enfrentar um dia que começa às seis da manhã e termina às dez da noite, é natural pensar que moda não é para todos. Mas, como ela enfatiza, todo mundo tem um estilo pessoal, ele só é atravessado por outras urgências.

Foto: @claudirib (Reprodução/Instagram)
Carol explicou que esse comportamento está profundamente relacionado à escassez e ao modo como o dinheiro é contabilizado no cotidiano da maioria das pessoas. Mesmo quem trabalha de carteira assinada vive o medo de faltar no fim do mês. Por isso, é comum pensar: “fiz um sacrifício para comprar essa peça para me sentir minimamente bem, vou usá-la no ônibus? Não”. Para ela, essa lógica traduz de forma muito clara a desigualdade urbana.
Enquanto algumas pessoas têm o direito de usar o que quiserem, onde quiserem, outras precisam calcular cada escolha, equilibrando sobrevivência e estética. Ainda assim, a historiadora de moda enxerga potência criativa na periferia e no subúrbio. Muita coisa é criada e recriada. A circularidade de roupas sempre existiu nesses espaços. Às vezes por necessidade e às vezes por cultura. A roupa do filho passa para o primo que passa para o irmão. Isso é prática comum e também é moda. Ela cita ainda debates recentes sobre olhar local para sustentabilidade, que propõem pensar práticas a partir do lugar em que surgem e das necessidades de quem vive ali.

Foto: @maispramay (Reprodução/Instagram)
vestir-se como ato de resistência
o gesto político e de pertencimento no vestir
Quando perguntamos se a escolha da roupa pode ser um gesto político, Carol responde sem hesitar: “Se vestir bem, com cor e estilo, mesmo em espaços marcados pelo cansaço e pela precariedade, é um gesto de enfrentamento ao apagamento cultural. O vestir comunica território, pertencimento e, principalmente, escolhas, mesmo quando essas escolhas nascem da necessidade.”
Ela menciona o corpo feminino como um dos maiores exemplos de como o vestir é também uma forma de proteção. “Essas práticas revelam e denunciam, ao mesmo tempo, como o corpo da mulher precisa se cuidar quase como uma tática de sobrevivência. A roupa larga, a mochila na frente do corpo, o tênis que permite correr, tudo isso é linguagem política.”
Nos trens e ônibus, os códigos do vestir também se manifestam nas roupas de time, nos uniformes escolares e nas peças simples que ganham significado coletivo. “Esses elementos são símbolos de pertencimento social. No transporte, quando você vê alguém com a camisa do Flamengo, por exemplo, cria uma identificação imediata. É uma forma de dizer: ‘Eu existo nesse espaço junto com outras pessoas como eu’.”
Em um país tão desigual, o que vestimos ultrapassa o espelho. A roupa é prática, sim, mas também é voz, narrativa e resistência, um lembrete diário de que, mesmo atravessados pela pressa, ainda encontramos maneiras de afirmar quem somos.
Gostou? Então assine a nossa newsletter e seja a primeira a receber as novidades e descontos exclusivos do Steal The Look
Fonte: Steal the Look