Ela abriu o primeiro bar em Curitiba em 1991. Desde então, coleciona bares, histórias, goles e memórias do cenário curitibano. Hoje, não importa grupos, idade ou classe social, Ieda Godoy é a “mais falada” de Curitiba quando o assunto é boa música, boa comida, bom papo e um bom lugar para encontrar tudo isso.
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Atualmente, ela comanda o Wonka, que celebrou três anos de reabertura no início do ano com um cortejo saído do Largo da Ordem, no centro da cidade, reunindo centenas de pessoas. O bar abriga diversos shows, de jazz a samba, de anônimos a badalados. Ieda também está à frente do Café Mafalda, um ponto de encontro de universitários e pessoas que prezam pela alimentação saudável e que, à noite, se transforma em um refúgio para encontros férteis.
Os dois estabelecimentos, com suas respectivas características, resultam de 34 anos de experiência na noite e de uma disposição inata para enxergar pessoas e (m) potenciais. Ieda Godoy nasceu em Prudentópolis, Centro-Sul do Paraná, em 1º de março de 1967. Ela e os três irmãos cresceram na cidade até que, no dia de seu aniversário de 18 anos, mudou-se para Curitiba para estudar. Passou no vestibular de Jornalismo, mas cursou por pouco tempo; fez Pedagogia e migrou para as Artes Cênicas.
No começo da década de 1990, dava aula em uma escola construtivista em Curitiba, quando abriu, com amigos, o lendário bar Poeta Maldito. “Eu tinha 24 anos e me envolvi muito com o bar. Isso fez com que eu deixasse meus outros projetos de lado”, conta.
Mas abrir um bar não era apenas um devaneio. Tanto que após a “morte” prematura do Poeta Maldito, Ieda abriu o Dolores Nervosa, outro bar que marcou a juventude de muitos artistas, jornalistas e professores da cidade. “Abrir um bar é sempre uma aventura. O propósito vem com o tempo”, conta.
O fato de ela e dos amigos serem ligados à música, artes plásticas e literatura fez com que o público dessas áreas frequentasse em peso tanto o Poeta quanto o Dolores (que era apenas um nome aleatório e não uma persona, para a decepção de alguns).
“Nossa intenção era sempre inovar, tanto no sentido de fazer exposições de arte no próprio bar quanto na discotecagem, por exemplo. Colocávamos DJ para tocar quando ninguém fazia isso”, lembra.
Crescendo com a turma
Dolores viveu até 1993, quando foi substituído pelo irmão mais sério, Dromedário. “De certa forma, nós fomos crescendo com nosso público. O Dolores era mais informal, uma loucura. Já no Dromedário, fizemos uma reforma, mudamos as cores da parede, colocamos um cardápio. Isso tudo em uma época em que bar não era lugar de comer”, conta, salientando que, novamente, a música moldava e ligava o público que frequentava o bar. “Nossa música era elegante, e isso já promovia uma triagem no público.”
O Dromedário seguiu firme até o início dos anos 2000, quando Ieda, grávida do segundo filho, Arthur (o primeiro, Pedro, nasceu em 1996), e cansada de trabalhar na noite, decidiu que precisava de mais tempo.
“Eu ralei muito. Na época do Dolores, trabalhava em uma videolocadora durante o dia e, à noite, ficava no bar. Fazia tudo a pé, mesmo grávida dos meninos”, recorda.
Foi pensando neles que ela fechou o bar e passou um breve período sabático, “cuidando do quintal”, sempre com o apoio do ex-marido e atual companheiro de casa – mesmo separados, os dois moram juntos em um modelo de família que ela diz ser “peculiar”.
Nessa época, “cansada de descansar”, como brinca, passou a promover festas na Sociedade Portuguesa e no Vasquinho, duas conhecidas casas de shows da cidade. “Naquele tempo, a divulgação era feita com base nas filipetas. Eu andava nas ruas de Curitiba distribuindo e, assim, consegui levar até 500 pessoas para as festas, que eram um sucesso”, recorda.
Nos anos seguintes vieram o Wonka, que existe até hoje, apesar de ter ficado um período de portas fechadas, o Café Mafalda, uma parceria com o também ex-companheiro Jeff Sabbag no Dizzy Café Concerto (hoje comandado por ele), e o Mãe, inspirado no cineasta Pedro Almodóvar, que ficou aberto por um curto período.
Pandemia e readaptação
Foi uma época bastante ativa até que, assim como para todos, a pandemia chegou. Nessa época, apenas o Café Mafalda, atrás do Teatro Guaíra, estava funcionando e, com a ajuda dos amigos, sobreviveu a um dos períodos mais difíceis – mas não o único.
Ieda ficou ainda mais conhecida no cenário da capital por fazer uma militância ativa para preservar as pessoas, cuidar do público e defender a vacinação.
“Na época da pandemia, trabalhamos com delivery. Eu mesma fazia as entregas. Quando achamos que o pior período tinha passado, abrimos o café e, dias depois, fomos roubados. Saquearam tudo, destruíram o bar”, lembra. Mas, enquanto ela divulgava o ocorrido nas redes sociais, uma surpresa: os amigos e clientes começaram a mandar dinheiro. Fizeram uma vaquinha e foi possível reerguer o café em pouco tempo.
Foi a primeira grande reviravolta do Café Mafalda e o momento em que Ieda se deu conta do quanto a relação estabelecida com as pessoas ao longo do tempo foi importante. “Eu sempre fui uma pessoa muito correta e direta, e acho que isso reflete nas minhas relações.”
E essa relação com as pessoas foi colocada à prova pouquíssimo tempo depois, quando, em uma segunda-feira de 2022, uma pane elétrica causou um incêndio no café, destruindo todo o espaço.
“As pessoas começaram a me avisar. Eu fui a pé para o bar e só consegui ver a fumaça e sentir o cheiro de fuligem”, conta, em lágrimas. Mas a prova da amizade e do reconhecimento veio tão rápido quanto o fogo e, mais uma vez, amigos e clientes se reuniram para ressurgir das cinzas o Mafalda.
“Mais uma vez, os amigos me ajudaram a me reerguer, e isso tem muito a ver com tudo o que vem acontecendo nos últimos 30 anos. Tem a ver com minha postura em relação às coisas e ao que construí como ser humano”, salienta.
De zero a dez
Ela conta que sempre abriu os negócios na “raça”. Assim foi com o Wonka, em 2005, e na reabertura do espaço, há três anos. “Eu era um zero à esquerda. Já fui muito humilhada por ser pobre, por ser uma criança que só podia comprar roupas uma vez por ano. Eu consegui mudar essa história”.
Entre bares e marés, Ieda escreve textos primorosos que publica em suas redes sociais, fruto de dois anos de Jornalismo e de um talento para a escrita que não pode deixar de lado. Também voa no mundo da moda. Fez trabalhos como modelo, com o emblemático Victor Sálvaro e representou a H-AL, do estilista e artista Alexandre Linhares em um desfile para marca, no Teatro Guaíra. Entre tantas facetas, Ieda passeia sem medo pelas noites curitibanas, sempre andando a pé e enfrentando intempéries, sem receio, de cabeça erguida e corpo esguio.
Olha para trás na rua, mas nunca na vida. “Eu absolutamente amo os bares que abri. Eles me deram tudo: a educação dos meus filhos, a minha casa, os meus amigos, a minha cultura.”
Mas, se Ieda não tem fim, como mencionou em um de seus textos publicados (“Dentro de mim, não tem fim”, escreveu), a vida na noite e a dedicação aos bares podem ter um novo destino. “Este ano faço 58 anos. Penso em levar essa vida até os 60. Depois, quem sabe? Quero pegar mais leve, mas também quero continuar a espalhar felicidade.” Para Ieda, as coisas podem ter fim, mas não o que elas representam.
O post Retrato Falado: às vezes quieta, às vezes gritante, mas sempre pulsante. Conheça a história de Ieda Godoy apareceu primeiro em Bem Paraná.
Fonte:Bem Paraná