Para dar vida a Vera Paiva nas telonas, Valentina Herszage trouxe muito de sua alegria, curiosidade e constante inquietação com o mundo, sempre preferindo ter mais perguntas do que respostas. É com essas mesmas características que ela vive o momento mais importante de sua carreira, na expectativa do maior prêmio do cinema mundial. Já ganhamos tanto com você, Valentina Sempre que faço uma entrevista ou conto uma história, procuro estruturar os temas e perguntas em altos e baixos, misturando assuntos delicados com outros mais leves, polêmicas e novidades numa proporção em que o entrevistado se sinta à vontade para falar e o leitor instigado a percorrer cada palavra. Muitas vezes, o formato é necessário para se desfazer de algumas amarras naturais que duas pessoas que se conheceram ali, naquele momento, carregam. Com Valentina Herszage, foi como falar com uma amiga de longa data desde a primeira pergunta. Tudo com ela é high, nem as mais de 15 horas no set entre fotos, vídeos e entrevista tiraram o brilho e a clareza para falar de arte, política e moda dessa atriz que é expoente de uma nova e ótima safra do cinema brasileiro.
Perto de completar 27 anos, atualmente ela colhe os frutos dos últimos meses de trabalho intenso, com diversas estreias e filmes em cartaz – além do sucesso “Ainda Estou Aqui”, Valentina está em As Polacas, O Mensageiro e A Batalha da Rua Maria Antônia, todos com lançamentos recentes e temáticas políticas. Filha de uma psicanalista e um agente de turismo, Valentina se envolveu com a arte desde muito pequena e, aos 5 anos, já estava matriculada em uma escola de musicais no Rio de Janeiro, onde nasceu e cresceu. “Meus pais me incentivaram de uma maneira muito livre, não necessariamente com a pretensão que eu fosse artista e desse certo”, ela conta. Já aos 15, com seu primeiro longa-metragem, Mate-Me Por Favor, de Anita Rocha da Silveira, venceu o Troféu Redentor de Melhor Atriz no Festival do Rio e o prêmio Bisatto D’Oro do Festival de Veneza do mesmo ano.
Valentina foi a primeira atriz escalada por Walter Salles para “Ainda Estou Aqui”. Foi a partir da escolha de Veroca, então, que a família Paiva das telonas começou a ganhar vida. Naturalmente, é por ela também que somos introduzidos à história na primeira cena do filme – uma das últimas a serem gravadas. “É muito legal quando filmamos cenas do início no final, porque é onde a gente captura o público, então faz todo sentido já estar totalmente dentro da personagem. O Walter tem um olhar muito preciso.” Estudiosa, dedicada em cada interpretação e “caseiraça” nas horas vagas, ela se considera amante do tédio, um tanto medrosa e vê valor num besteirol para desligar a cabeça das atuações profundas que permearam sua carreira até aqui. “Eu amo ficar em casa, cuidar das minhas plantas e fazer minhas artes manuais. Quando estou de férias, entre gravações ou até sem trabalho – porque isso acontece muito na nossa carreira, é normal –, penso: ‘Será que prefiro ficar em casa em vez de sair?’. Geralmente, a resposta é sim”, brinca.
Valentina Herszage é capa da Glamour de Fevereiro
Bruna Castanheira
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O talento e a paciência para os trabalhos manuais, que usa de escape para a ansiedade que a acomete com certa frequência – “Ser ansiosa hoje em dia é um sintoma comum, né? A pessoa que não é está de parabéns.” – ajudaram a formar a relação de amizade com Fernanda Torres, sua premiadíssima colega de elenco, a quem não dispensa elogios. As atrizes aprenderam com as respectivas avós a crochetar e dividiram o hobby nos sets de filmagem. “A Fernanda é um deslumbre, o céu, sou apaixonada.”
A conexão entre as duas reflete o clima que tomou o elenco do filme, e Valentina enche a boca para falar de seus irmãos na ficção que se tornaram como uma família na vida real. “Foi o primeiro trabalho do Guilherme [Silveira] e da Cora [Mora], que fazem o Marcelo e a Babiu, e é incrível ver a espontaneidade, a naturalidade, uma coisa que com os anos de atuação a gente acaba perdendo e fica lutando para recuperar. Em algumas cenas, o Guilherme começava a falar, o Selton entrava no improviso e ficava uma coisa linda. O Walter permitiu que a gente trouxesse para essa família nossos jeitos, nossas graças”, conta. É com Bárbara Luz e Luiza Kosovski, que interpretam Nalu e Eliana, que ela vibra pela possibilidade de subir ao palco mais cobiçado do cinema no dia 2 de março, em pleno Carnaval no Brasil: o do Teatro Dolby, em Los Angeles, onde acontece a cerimônia do Oscar, em que “Ainda Estou Aqui”concorre a três prêmios: Melhor Filme, Melhor Filme Internacional e Melhor Atriz.
A seguir, você lê a entrevista com Valentina em sua primeira capa da Glamour e entra com a gente na torcida que colocou o País em clima de Copa do Mundo (desculpa, Fernanda, impossível não se emocionar). Ainda e sempre estaremos aqui, aplaudindo e vibrando.
Valentina Herszage é capa da Glamour de Fevereiro
Bruna Castanheira
Numa entrevista recente, Fernanda Torres brincou que o trabalho dela virou maquiagem, cabelo e look. Como está sendo esse seu primeiro contato com o mundo da moda, pelo cinema?
Eu sempre gostei muito de moda. Minha mãe deu aula de moda na universidade, minha avó tinha uma loja de bijuterias. Eu cresci indo à casa dela, abrindo o armário e mexendo em tudo. Lembro dela falando: “Pode escolher o que você quiser”. Então, de um jeito muito lúdico, sempre fui ligada a esse universo. Agora, com vários lançamentos e festivais de cinema, acho que finalmente entendi o quanto a moda e o cinema têm a ver. De alguma maneira, eles acompanham as transformações dos tempos, os cenários políticos e antecipam muita coisa.
É uma preocupação sua alinhar a mensagem que passa com a moda nestas oportunidades?
Com certeza. Conversei bastante com a Fernanda antes do Festival de Veneza, sobre como associar o que vestiríamos à história desse filme. Não teria sentido a gente estar vestida, sei lá, de plumas cor-de-rosa, porque é um filme que fala de uma história brutal e real. Temos muito respeito e muita admiração por essa família, eles estavam com a gente em todos os momentos. E aí preciso citar a [stylist] Rita Lazzarotti, que está sendo uma mentora para mim. É uma virada de chave mesmo, muito interessante estudar o que cabe de moda nesses tapetes e entender como o meu trabalho pode estar associado a isso.
“Ainda Estou Aqui”está tendo uma repercussão sem precedentes na história do nosso cinema. Como está sendo essa experiência para você?
Uma das coisas mais legais que tem acontecido comigo é quando as pessoas que assistiram “Ainda Estou Aqui” me contam que adoraram o filme e foram atrás de outros trabalhos que fiz, porque eu mesma faço isso! Às vezes, vejo uma série ou filme com um ator que nunca tinha visto antes e descubro que essa pessoa fez um monte de coisa legal, e aí é mais um mundo para descobrir. É incrível ver como esse trabalho despertou nas pessoas a vontade de assistir a outras coisas que venho fazendo, como As Polacas, longa que protagonizo e entrou agora no streaming. Muita gente veio me contar que assistiu. Faço muito cinema político, é uma coisa que me interessa.
É como se as pessoas estivessem pegando vocês pela mão rumo a esses prêmios todos, uma torcida e uma comoção nacional.
O sentimento do público com esse filme tem sido de uma parceria maravilhosa. As pessoas agem como se fossem nossas amigas mesmo, pegando na mão e vibrando junto de uma maneira muito afetuosa. Recebo mensagens de gente que assistiu no Canadá, na Alemanha, é um fenômeno. Eu sabia que seria um filme poderoso, mas não que chegaria a esse ponto.
Valentina Herszage é capa da Glamour de Fevereiro
Bruna Castanheira
Além de Fernanda, Selton [Mello] e Walter, que você já citou, quem são seus mentores na vida e na atuação, as pessoas que te ajudam a navegar por esses momentos?
Não dá para não dizer meus pais. Minha família torce por mim de uma maneira leve, festiva e sem pressão. Meus pais sempre foram entusiastas do cinema. Então, desde os filmes mais alternativos que já fiz, eles sempre me apoiam, vão ao cinema ver duas ou três vezes. Meu irmão ama e torce muito, meu namorado [o empresário Gabriel Capobianco] também. Tenho pessoas próximas a mim e outras que cruzei no ofício, como a Andréa Beltrão, que me ensinou muito. Me ensinou a estar em cena e me divertir, sabe? Tem o Mateus Solano, que é meu grande amigo, uma pessoa muito generosa, já fizemos três novelas juntos. São pessoas que me abrem os olhos para tanta coisa, principalmente para ser feliz nessa profissão. Porque, às vezes, a gente passa uns perrengues, uns desconfortos… A gente precisa aprender a não emburacar.
E o que você faz para não emburacar?
A gente tem que se oferecer de um jeito que não se ofereceria na vida. Claro que tem gente que se oferece muito, mas eu sou uma pessoa bem medrosa. É até engraçado quando as pessoas vão trabalhar comigo, porque parece que existe uma outra Valentina, uma carcaça diferente quando estou em cena. Acho que por ter um propósito muito grande ali. Por exemplo, na série da Hebe, eu morria de medo da gargalhada da Hebe. Morria de medo. Isso me paralisava. Eu falava: “Meu Deus, não vou conseguir rir como ela ria”. E, para mim, o som da Hebe era a gargalhada. Aí vinha a Andréa e falava: “Esquece essa gargalhada, deixa isso pra lá”, de uma maneira que me fizesse não emburacar. E quando finalmente deixei pra lá, a gargalhada surgiu.
Isso também se deu com o elenco de “Ainda Estou Aqui”? Principalmente com o elenco mirim, seus irmãos e irmãs na primeira fase?
Eu amo falar desse núcleo do filme! A gente construiu algo tão singular. Esses irmãos são testemunhas de muitas das mesmas coisas, mas cada um tem um jeito diferente de entender e desentender o que aconteceu. Foi um trabalho muito legal da Amanda Gabriel, nossa preparadora, porque ela não lidou só com o grupo, mas com cada um ali, um trabalho muito profundo. A Letícia Naveira, produtora de elenco, fez uma escolha bem afiada para esses atores. Eu fui a primeira filha a ser escalada desse núcleo, então ajudei a Letícia e o Walter nos testes. Fiz cena com a Luiza [Kosovski], que faz a Eliana, com a Bárbara [Luz], que faz a Nalu, com as crianças, a Cora [Mora] e o Guilherme [Silveira].
Como é a relação de vocês? Ficaram muito amigos?
A gente entendeu que tinha que representar muito bem o que é ter irmãos, o que é ser jovem nos anos 70, a relação com esses pais. Construímos uma amizade muito incrível, todos nós. A Bárbara construiu uma Nalu fenomenal. A Luiza eu conheço desde pequenininha, nossos pais são muito amigos. Eles choravam que nem bebês quando fomos para Veneza juntas. Viramos uma família.
Quais momentos especiais você leva das gravações com essa família que construíram?
Um dos dias que mais sinto saudades, porque foi mágico, é quando gravamos a cena da despedida da Veroca, “Take Me Back To Piauí”. É um dos últimos momentos de alegria plena que a gente tem dessa família. Há a relação com a música, com esse corpo mais livre; fizemos aulas de dança, porque é um estilo muito particular dos anos 70, e a gente que não viveu foi atrás de treinar. Era um dia que estava todo mundo, o [Humberto] Carrão, a Camila Márdila, o Dan [Stulbach]… O set estava cheio e muito feliz. Também lembro de quando filmamos as cenas de carro no Aterro do Flamengo, tinha todo um balé de carros de época, olhávamos para as pessoas animadas, aquela figuração incrível, foi um dia para viver o cinema em seu melhor estado.
Valentina Herszage é capa da Glamour de Fevereiro
Bruna Castanheira
A sua personagem, Vera Paiva, é a filha mais velha de Eunice e Rubens. Como foi a preparação para interpretá-la?
Essa coisa de interpretar uma pessoa viva, a gente sempre fica meio apavorada. Acho que começa a fluir quando a gente entende que não vai fazer uma mímica e se libera para trazer a energia daquela pessoa. Então, o nosso foco foi ouvir a Vera e os irmãos contando da família, da casa que recebia amigos, que tinha dança, que tinha música. Fomos pelo caminho de ouvir e adaptar para a nossa visão poética. Eles nunca nos pressionaram a imitar ninguém e nos deixaram livres para trazer a energia da família.
E como vocês trabalharam as sutilezas que vemos em cena?
A Veroca fica meses fora e volta quando a família já está vivendo a ausência há um tempo, e ela tá lá tentando entender, tentando voltar. A gente não quis deixar nenhum sentimento estereotipado demais. É como o Marcelo [Rubens Paiva] escreve no livro, é mais sobre não entender e a angústia causada. Cuidamos para não definir como tristeza ou raiva, para não perder esse estado de desentendimento, que é o que gerava mais dor.
A Eunice tem uma coisa meio mãe-helicóptero, você percebe ali nas primeiras cenas que ela sabe exatamente o que está acontecendo com cada um dos filhos e, ao mesmo tempo, passa por tudo aquilo sem esmorecer, tentando não afetá-los. Você se identifica com essa criação, com esses pais?
Minha mãe me protegeu muito. Ela sempre se preocupou em garantir que a gente pudesse crescer felizes e descobrindo as coisas na idade certa. Sempre tivemos uma relação incrível, mas ali pelos 20 anos, um pouco mais velha que a Veroca, me tornei mais amiga dela, comecei a descobri-la, sabe? O que ela gostava de ouvir, o que gostava de fazer, quando chorava e quando se sentia frágil e com medo. Me identifico também com esse lugar da adolescência, o momento de precisar ir e se conhecer. O Rubens me lembra muito do meu pai, ele é brincalhão, afetuoso, abraça todo mundo, ri, faz piada…
Você já fez três filmes que tratam de ditadura, disse que gosta de História e da temática. Como foi sua criação política?
Minha mãe é uma mulher muito politizada e interessada. Meus pais liam muito e me estimulavam a questionar, principalmente, e não a ter todas as respostas. Então, sempre me interessei pelo que está acontecendo no Brasil e no mundo. Quando fiz o filme da Lucia Murat, O Mensageiro, foi o primeiro contato que tive com uma construção de personagem nesse tema. Meu bisavô foi preso na ditadura. Ele era contra-almirante da Marinha, e, em 64, foi contra o Golpe. Minha avó tinha 18 anos, tinha acabado de ter o meu tio, e visitava ele numa solitária. Ela conta, inclusive, que quando os militares foram prendê-lo, a cena foi muito parecida com “Ainda Estou Aqui”. Então também tenho essa história na minha família. Aí, por parte de pai, vieram todos da Polônia, são fatos da minha história pessoal que se relacionam diretamente com as histórias que tenho contado em cena.
E como isso te ajudou na construção dessas personagens?
Minha avó conta de um lugar de quem ficou, de quem não foi preso e teve o pai levado por um tempo. Meu bisavô sobreviveu, ficou um ano preso e depois foi solto. E “Ainda Estou Aqui” trata do mesmo ponto de vista, que é duríssimo. A gente não vê o Rubens sendo preso, não vê o que acontece com ele, mas sim o que acontece com quem ficou aqui, sem ele. Já o filme da Lucia é do ponto de vista da pessoa que foi presa, então minha maior fonte de pesquisa nesse sentido foi ela própria.
Para você, qual a importância de retratar essas histórias e personagens políticas hoje?
Quando eu tive o encontro com a Lucia Murat — ela foi presa e torturada na ditadura e transformou tudo isso em cinema, em documentário —, ela me indicou muitas obras: Fico Te Devendo Uma Carta Sobre o Brasil, Torre das Donzelas, O Que É Isso, Companheiro?, com a própria Fernanda. Foi quando comecei a entender que minha geração está muito para trás no tema e sobre como se conversa com o mundo de agora, um mundo superconservador, de direita, religioso.
É uma temática que você gostaria de continuar trabalhando?
Com certeza. Acho que tem muita história para contar. Tantas famílias passaram por isso, tem muita coisa ainda para ser falada. O cinema é poderoso, ele personaliza as histórias, dá nome, rosto. Chega nas pessoas de uma maneira que outros meios talvez não alcancem.
Como você mensura o impacto do filme nas novas gerações?
Antes de virar o ano, fui assistir ao filme novamente no cinema, sem essa pressão de estreia, premiação, então botei um pijama e fui sozinha. Fiquei muito impressionada em ver grupos de adolescentes de 14, 15 anos assistindo e se emocionando. Muita gente aprendeu [sobre ditadura] na escola, eu tive professores de História maravilhosos, mas o cinema é lúdico, é tipo uma viagem. Você entra na sala, fica duas horas e não pensa em mais nada, a não ser aquilo ali. E “Ainda Estou Aqui” faz esse convite. O início do filme te pega pela mão e te convida a entrar nessa casa de uma maneira tão bonita, tão singela, que você não se sente obrigada a nada, nem a chorar, nem a se emocionar, mas vai entrando ali no clima. O que Walter fez foi um golaço, ele pegou todo mundo, de todas as idades e todos os nichos. Outro dia fui ao banco e a galera toda veio me contar que assistiu, motoristas de aplicativo falam comigo do filme… Foi uma coisa que furou bolhas. E quando extrapola, é muita emoção. É gol.
Valentina Herszage é capa da Glamour de Fevereiro
Bruna Castanheira
Fonte: Glamour