“Você precisa conviver com a dor”: por que ainda é tão difícil lidar com a endometriose?


Especialistas e pacientes dividem a realidade de conviver com esta doença crônica – e como buscar acolhimento e tratamento adequados Dor, negligência, diagnóstico tardio e (muita) força. Essas palavras podem ser diretamente relacionadas à experiência de quem convive com a endometriose, uma doença ginecologicamente inflamatória, crônica e, muitas vezes, com efeito incapacitante em razão de dores intensas. No país, cerca de 7 milhões de brasileiras lidam com esse impacto direto na qualidade de vida,nas relações, na fertilidade e até no trabalho.
A doença ainda é cercada de mitos e falta de informação, que acabam prejudicando o diagnóstico e tratamento. Para esclarecer todas as dúvidas, conversamos com a ginecologista Juliana Sperandio, especialista em endometriose e mioma. Allana Feres, Tatiana Martinelli e Paloma Onete são pacientes diagnosticadas e também dividem as experiências aqui.
Afinal, o que é a endometriose?
Estima-se que a endometriose atinja 1 em cada 10 pessoas com útero em idade fértil no mundo. Ela é caracterizada pela presença de células semelhantes ao endométrio (tecido que reveste o útero) fora do útero. Elas podem se fixar nos ovários, nas trompas, no intestino, na bexiga e em outras regiões do abdome e da pelve, provocando inflamação, aderências e dores intensas. “A doença é multifatorial, com causas genéticas, hormonais, imunológicas e inflamatórias. Por isso, exige um olhar amplo e individualizado”, explica a médica Juliana Sperandio à Glamour.
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Quais são os sintomas da endometriose?
“Desde a minha primeira menstruação sempre sofri com cólicas, e elas pioraram com o passar dos anos”, relata a designer Paloma Onete, de 31. Um dos alertas mais comuns do quadro são as cólicas menstruais incapacitantes. “Dores com nota acima de 6, em uma escala de 0 a 10, precisam ser investigada”, aponta a médica.
Além disso, também pode causar dor pélvica fora do ciclo menstrual, dor durante a relação sexual – especialmente quando há penetração profunda –, dificuldade para evacuar e urinar durante a menstruação, infertilidade, fadiga intensa, náuseas e mal-estar generalizado que compromete a rotina e o bem-estar.
A endometriose também tem um forte impacto nos relacionamentos, na vida social, sexual e no trabalho. “Estudos apontam que mulheres com sintomas incapacitantes podem perder até 19 horas semanais de trabalho e possuem um gasto médio anual para o sistema de saúde de 9.579 euros”, diz a ginecologista.
O desafio do diagnóstico
De acordo com a Juliana Sperandio, o diagnóstico adequado começa com a ida à ginecologista e uma conversa extensa para entender os sintomas. “Ao suspeitar do diagnóstico, direcionamos os exames de imagem, que sempre devem ser feitos por médicos radiologistas capacitados. E os principais exames são: ultrassom transvaginal e/ou ressonância magnética da pelve”, detalha.
Porém, um dos principais obstáculos no tratamento da endometriose é de fato chegar até o diagnóstico, que pode levar de sete a dez anos, em média, para ser identificado. No caso das entrevistadas, o percurso foi ainda mais longo – e doloroso. A jornalista e criadora de conteúdo digital Allana Fares conta que sentia dores desde a adolescência e levou 15 anos até ter uma resposta.
“Os médicos da minha cidade diziam que ser mulher era assim mesmo e que eu teria que aprender a lidar com a dor. Precisei viajar até São Paulo para procurar um médico que realmente me escutasse e me ajudasse”, conta.
Paloma também enfrentou negligência médica. “Quando eu era jovem, os especialistas me diziam que anticoncepcionais não eram a melhor solução e, mesmo relatando dores fortes, diziam que os desconfortos eram causados por má alimentação, peso, falta de vitaminas e até mesmo depressão”, recorda. Assim como Allana, Paloma também levou cerca de 15 anos para ser diagnosticada corretamente, mesmo sofrendo com dores desde a menarca – a primeira menstruação –, e nenhum médico pelo qual ela passou até os 28 anos solicitou ressonância para investigar seu caso.
Já Tatiana Martinelli passou por sete ginecologistas, que sempre pediam os mesmos exames: papanicolau ou ultrassom. “Fiquei cinco anos até descobrir, mas eu tinha certeza que não era somente um cisto ou mioma, porque minhas dores eram muito diferentes”, conta. “Depois disso, comecei a pesquisar sobre e fui até mais uma ginecologista, que me perguntou se nenhum médico havia me solicitado uma ressonância pélvica, e a resposta era não. Foi então que eu fui diagnosticada com uma endometriose que estava quase alcançando meu intestino.”
Quais são os tipos de tratamento?
A endometriose é uma doença crônica sem cura definitiva, mas existem tratamentos individualizados para controlar os sintomas, melhorar a qualidade de vida, avaliar a fertilidade e para a prevenção de complicações.
“Os recursos disponíveis são diversos e devem ser individualizados, como medicações para controle da dor, terapia hormonal, manejo com suporte de equipe multidisciplinar – nutrição, fisioterapia, osteopatia, acupuntura – e cirurgia”, explica a ginecologista.
“Entretanto, a cirurgia é recomendada em casos específicos, como sintomas incapacitantes que não melhoram com tratamento clínico, endometriose acometendo locais como ureteres (canais que levam a urina do rim à bexiga, apêndice e intestino delgado, e infertilidade com doença avançada e/ou falhas de tratamento de reprodução assistida anteriores”, complementa ela. E a cirurgia deve ser realizada por equipes capacitadas por uma via minimamente invasiva (com pequenos cortes na pelve e abdôme), seja por laparoscopia ou cirurgia robótica.
Como lidar com a endometriose no dia a dia?
Aprender a lidar com o seu diagnóstico é essencial e entender que vão ter dias bons e ruins também. “A endometriose afeta vários aspectos da minha vida e eu tenho que adaptar a minha rotina aos meus dias de menstruação e ovulação”, destaca Allana Feres. “Eu treino todos os dias – faço musculação e aeróbico há 10 anos –, mas o meu treinador sabe que quando meu período está chegando, eu vou faltar uns três ou quatro dias, e me reservo, porque meu fluxo é muito alto, me dá dores de cabeça e no corpo.” Allana ainda conta que sente como se estivesse doente com uma gripe muito forte e com dor abdominal como se tivesse comido algo que não fez bem.
Já Tatiana afirma que as dores crônicas que tinha todos os dias melhoraram, porém, “na minha vida sexual, tenho dores na relação e quando tenho orgasmos”, afirma Tatiana. Ela ainda conta que acredita que o maior desafio no dia a dia, na verdade, é um conjunto de muitos deles. “Hoje, estou com 48 anos e entrei na menopausa, e agora os hormônios são mais desafiadores”, reitera.
Para Paloma, o maior desafio é em relação às dores físicas. “A dor começa em um lugar e se espalha. No meu caso, principalmente para as costas, inchaços nas pernas, e na barriga”, destaca ela.
Após o diagnóstico, o que muda na vida das pacientes?
De modo geral, nossas entrevistadas contam que tiveram que se adaptar à uma nova rotina de exercícios e alimentação saudável para que vivessem com mais tranquilidade e menos dor. “Depois de ser diagnosticada, senti muito alívio, porque tudo o que eu queria era eliminar as dores que eu sentia”, conta Tatiana. Além disso, ela mudou a dieta e começou a praticar exercícios, práticas que ajudaram muito. Após ser encaminhada para outro médico, foi aconselhada a colocar DIU, também como forma de diminuir as dores.
“Minha vida realmente melhorou depois que eu adaptei a minha vida à minha condição”, relata Allana. Atualmente, ela tem uma rotina saudável e, para ajudar a controlar as dores, utiliza gestrinona. “Antes, eu tinha preconceito com o medicamento, mas não tive nenhum efeito colateral, muito pelo contrário. Ele foi receitado e ministrado por uma profissional competente, que entendeu que essa medicação poderia me ajudar com as dores”, complementa ela.
Paloma complementou os hábitos saudáveis com remédios prescritos. “Não saber como resolver um problema que eu carregava desde a adolescência e sempre ouvindo que ‘a dor é normal’ gerou uma onda de frustração na vida adulta por ser incapaz de suportar algo que me deixava aflita todos os meses. Eu não sabia se conseguiria levantar para trabalhar sem vontade de chorar, e isso me causava muita ansiedade. Também passei a me sentir mais ansiosa quando um médico me disse, erroneamente, que esses incômodos eram causados pela depressão.”
Endometriose e fertilidade
A endometriose pode afetar diretamente a fertilidade feminina. De 30% a 50% das mulheres com endometriose podem ter infertilidade associada, especialmente quando há comprometimento dos ovários, das trompas, tubas uterinas e/ou doença muito avançada com alteração da anatomia pélvica e inflamação.
“A principal forma de minimizar os impactos é o diagnóstico da doença precoce. A partir disso, entendemos se a mulher tem desejo reprodutivo e mapeamos o risco de infertilidade a partir de fatores clínicos associados aos exames”, explica Juliana.
Impacto da endometriose na saúde mental e emocional
De acordo com Juliana Sperandio, a qualidade de vida da mulher com endometriose pode ser muito comprometida, unindo isso ao fato do tempo de atraso no diagnóstico da doença – em média, de 7 a 10 anos. “Muitas vezes, a negligência médica que as mulheres sofrem dentro do sistema de saúde, por não terem sua dor e sintomas validados, pode ser um gatilho para quadros de depressão e ansiedade. As doenças psíquicas são comuns nas mulheres com endometriose, justamente pelo fato de terem uma das origens em comum, que é o processo inflamatório no corpo todo (inclusive, no cérebro), alterando os neurotransmissores e causando quadros de transtornos psíquicos.
Se você acabou de descobrir seu diagnóstico, não se desespere
“Se você está na dúvida sobre o seu diagnóstico, siga seus instintos e insista para que os médicos te deem a resposta e a solução correta”, aconselha Tatiana Martinelli. Já Paloma afirma que “há tratamento e é possível viver uma vida sem dor. Se você sentir o menor sinal de que algo está errado, procure um médico e não desista de conseguir o seu diagnóstico.”
“Junto com a endometriose, temos que nos adaptar a muitas coisas, inclusive a nossa própria vida. Busque bons médicos e tratamentos, mas não se prenda em apenas uma solução, porque o que pode funcionar para alguém, pode não ser útil para você. Teste até encontrar o melhor caminho para ter qualidade de vida”, finaliza Allana Feres.
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Fonte: Glamour

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