“Estamos vivendo algo que eu não esperei ver tão cedo. É um processo de fragilização crescente da democracia que está se acelerando cada vez mais. A única coisa que posso atestar é o quanto o filme, que fala de uma ditadura militar, se tornou tão próximo de quem o viu. Acho que isso explica a maneira crescente como ele foi sendo abraçado nos Estados Unidos”, disse o cineasta Walter Salles Junior, diretor de “Ainda estou aqui”, nesta segunda à noite, em Los Angeles, em uma conferência de imprensa presencial e on-line.
Respondendo a uma pergunta do Valor, ele afirmou que tem ouvido muitos comentários de como o longa, premiado com o Oscar de Melhor Filme Internacional, se parece com a realidade atual dos EUA. “E eu diria que não é só aqui. De uma certa forma, isso ecoa o perigo autoritário que hoje grassa no mundo todo.”
Salles ressaltou o papel do jornalismo e da arte em meio a um cenário que descreveu como “profundamente inquietante”. “Estamos vivendo um momento de extrema crueldade, da prática da crueldade como forma de exercício do poder. Numa hora como essa, o jornalismo investigativo, a literatura, a música, o cinema, todas as formas de expressão tornam-se fundamentais para combater isso, para fazer uma polifonia democrática em meio a algo que se torna cada vez mais um funil autoritário.”
No início da entrevista, acompanhado dos atores Fernanda Torres, indicada a Melhor Atriz, e Selton Mello, que interpreta o ex-deputado Rubens Paiva, Salles contou que havia escrito notas para ajudá-lo na hora de aceitar o prêmio, caso o filme vencesse, mas não as encontrou quando subiu ao palco. “Coloquei e fiquei de óculos sem ter o que ler”, brincou.
O cineasta disse que no discurso original, substituído por uma fala de improviso, ele agradecia ao cinema brasileiro e latino-americano e reforçava a importância da trajetória de Eunice Paiva, viúva de Rubens, como “símbolo de uma resistência que também inclui o afeto”.
“Terminava dizendo que governos autoritários como este país [os EUA] tem hoje surgem, mas acabam e somem no esgoto da história, enquanto livros como o de Marcelo [Rubens Paiva, filho de Eunice e Rubens e autor do livro no qual se baseou o roteiro], canções como do Erasmo (Carlos), do Caetano (Veloso), filmes da cinematografia latino-americana, o cinema independente americano… isso sobra. Sobra porque vira memória”. A última frase, a única que pretendia falar em português, disse Salles, era “Viva a democracia. Ditadura nunca mais”.
“Aprendi o poder da contenção, do realismo no lugar mais honesto”, afirmou Fernanda Torres sobre o processo de preparação para interpretar Eunice Paiva. “Todo mundo diz o quanto o filme parece real, que parece uma família de verdade”, comentou. Afirmou também que o ator é um acúmulo dos personagens que interpreta e que vai levar Eunice Paiva consigo para os papéis no futuro.
Selton Mello disse que foi uma honra viver Rubens Paiva. “Meu Deus, um homem que foi levado de casa e assassinado pelo Estado. E eu o trouxe para viver de novo”.
“Ainda estou aqui” é o primeiro longa-metragem original do Globoplay. Em cartaz nos cinemas, onde já foi visto por 5 milhões de brasileiros desde sua estreia, será exibido com exclusividade no Globoplay após sua trajetória nas salas de exibição.
Fonte: Valor